terça-feira, 10 de abril de 2012

Acervo mostra as histórias do crime em Minas

Cerca de 500 mil documentos da antiga Chefia de Polícia contam passagens pitorescas de bandidos e da criminalidade em minas gerais no período de 1842 a 1945

Gustavo Werneck -Estado de Minas
Publicação: 10/04/2012 

Universitários têm a missão de verificar condições de conservação da documentação oficial (Marcos Michelin/EM/DA Press)
Universitários têm a missão de verificar condições de conservação da documentação oficial

Feia, baixa, magra, com cicatriz de queimadura em dois dedos da mão direita e andando curvada para a frente. Antes que alguém pense na descrição de uma bruxa de história infantil, é preciso voltar no tempo e explicar que figura é essa: trata-se da espanhola Basilisa Leon, que deu um golpe numa residência de São Paulo (SP), onde trabalhou como empregada, e levou 10 contos de réis em dinheiro, três medalhas do Conservatório Musical de Paris, um revólver imitação Smith & Wesson e mais 15 joias de ouro e brilhantes. Em maio de 1907, a polícia paulista distribuiu foto e texto sobre a ladra, que foi procurada também em Minas.

Mais de um século depois, o folheto com a descrição de Basilisa está bem conservado e serve como retrato da criminalidade de uma época que registrava também muitos abigeatos, ou furto de animais no pasto; uxoricídios, assassinato da mulher pelo marido; defloramentos ou desvirginamentos; busca de golpistas estrangeiros, comunicada em vários idiomas; fraudes eleitorais e outras ocorrências. O “procura-se” de Basilisa, a “hespanhola de trinta annos de edade”, conforme a grafia daqueles tempos, faz parte do total de cerca de 500 mil documentos, do período de 1842 a 1945, pertencentes à antiga Chefia de Polícia do estado. Agora, os papéis estão sendo higienizados e organizados, no Arquivo Público Mineiro (APM), em Belo Horizonte, como parte do projeto Memória da Administração do Estado de Minas Gerais.

Numa sala do APM, as pastas já conferidas se avolumam sobre as mesas e é possível encontrar toda sorte de documentos. De imediato, chamam a atenção as notas falsas de 20 mil réis (de 1899), 100 mil réis (1903), 2 mil réis (1912) e 1 mil réis (1919). Os coordenadores técnicos do projeto, os historiadores Thiago Veloso e Christiane Laís Fonseca da Costa, destacam a perfeição das cédulas falsificadas de forma artesanal e capazes de fazer qualquer um comer gato por lebre. Há o relato, por exemplo, de um comerciante que caiu no conto do vigário – melhor dizer, vigarista – ao trocar uma nota verdadeira pela falsa, tal a perfeição da cópia.

Cartazes com fotos e informações sobre ladrões, estelionatários e outros criminosos procurados no país (Marcos Michelin/EM/DA Press)
Cartazes com fotos e informações sobre ladrões, estelionatários e outros criminosos procurados no país
Moedas apreendidas faziam parte das falcatruas então sob investigação da Chefia de Polícia, responsável pela defesa dos bons costumes e manutenção da segurança e ordem pública. “Hoje, o serviço corresponderia à Polícia Civil, que faz parte da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds). O chefe de polícia comandava o trabalho dos delegados, no interior, e dos subdelegados, nos distritos”, explica a diretora de arquivo permanente da instituição, Ana Maria Souza. Ela diz que o projeto iniciado em 2006 com patrocínio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) contemplou, na primeira etapa, 480 mil documentos das antigas secretarias de Estado de Agricultura, Indústria, Comércio, Terra e Colonização e 80 mil de Viação e Obras Públicas. Na segunda etapa, foram tratadas cerca de 880 páginas de documentos da Secretaria do Interior, que era encarregada da educação, saúde, eleição etc. A terceira etapa, sobre a Chefia de Polícia, começou em abril de 2010 e deverá terminar ano que vem, estando prevista a quarta etapa, com a organização de mais 800 mil documentos do Departamento de Assistência aos Municípios.

Inventário
A documentação, explica Ana Maria, interessa principalmente a pesquisadores, professores, estudantes e especialistas na história de Minas. Toda ela ficará no APM, que já é dono de um acervo que permite busca sobre os primeiros imigrantes que chegaram a BH e interior mineiro, podendo ser fornecidas, inclusive, certidões para descendentes; registro de terras desde as sesmarias e outros dos períodos colonial, imperial e republicano. O objetivo da equipe, que reúne alunos dos cursos de história e arquivologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), PUC Minas e Uni-BH, não é estudar os textos ou restaurá-los, mas preservar e fazer um inventário. No dia a dia, coordenadores técnicos e estagiários, que atuam sob supervisão da professora de história e coordenadora geral Maria Efigênia Lage de Resende, encontram muitos papéis degradados, com resíduos de insetos, grampos, barbante, suporte ácido e outros problemas.

Golpistas daqui e de além-mar

 Impossível não ficar curioso diante de tantos manuscritos, papéis datilografados, fotografias em preto e branco, falsificações e outras investigações da Chefia de Polícia. Os historiadores mostram ocorrências referentes a casos que fizeram furor entre 1890 e 1893, um deles tendo como cenário os municípios mineiros de Patrocínio, na Região do Alto Paranaíba, e Bambuí no Centro-Oeste, além de Goiás. Em ações de puro banditismo, os índios affonsos matavam moradores da zona rural e assaltavam fazendas. Já no Vale do Jequitinhonha, assaltantes conhecidos como “bandidos cauaçus”,  ou cauassus, na grafia antiga, cometiam abigeato, assassinato, estupros e roubos em propriedades particulares, disseminando a violência sem dó nem piedade. Na mesma época, a polícia se empenhava na caça a bandos de ciganos encarregados de espalhar o pânico. “Temos aqui um painel variado e rico sobre a administração no estado nas primeiras décadas da República”, afirma Thiago.

Ao olhar as fotos de contraventores procurados pelas autoridades no fim do século 19 e início do 20, podem ser vistos, com certeza, os legítimos “ladrões de casaca”. Com pinta de galã, bigodes fartos, como mandava a moda em priscas eras, cabelos bem cortados e terno alinhado, os larápios, muitos deles estrangeiros, eram responsáveis por assaltos em seus países de origem. Um sueco, por exemplo, estava sendo procurado em cinco línguas (alemão, francês, italiano, espanhol e inglês) devido ao roubo de banco em 1901. Em 1907, num comunicado à Chefia de Polícia de Minas, as autoridades fiscais de SP solicitavam empenho na captura de um homem acusado de roubar 222 mil réis, o qual foi preso logo depois em Carangola, na Zona da Mata. A equipe encontrou duas ocorrências de apreensão de drogas.

Com luvas, máscaras e muita disposição, os estagiários têm a chance de ouro para ampliar conhecimentos e mergulhar de cabeça nesse universo de informações. “A cada dia, temos a oportunidade de juntar história e arquivologia”, diz o aluno bolsista da UFMG Marcos Volpin Júnior, de 28 anos, formado em história e atualmente cursando arquivologia. Para Bruno Eduardo Almeida Costa, de 23, estudante de história do Uni-BH, trata-se de uma experiência única, “pois o contato é direto com a fonte”. O colega Richard Vinícius Rodrigues de Oliveira, de 30, destaca a importância de ter diante de si tantos documentos relevantes, enquanto Marina Santos Braga, de 24, da PUC Minas, lembra que a atividade serve de base para o trabalho dos futuros historiadores. Renan Cerqueira Dias, de 22, da UFMG, destaca a união de “teoria e prática” e Natália Valentin Gervásio, de 19, também estudante de história da UFMG, está satisfeita por ficar “mais perto dos fatos”.

O acervo mostra a multiplicidade de ações do chefe de Polícia, que fiscalizava cinemas e casas de jogos, aprovava os estatutos de clubes, cuidava de internações nos manicômios, como o Hospício Nacional de Barbacena, nessa cidade da Região Central, e do fornecimento de alimentação para presos pobres. No acervo, há até um pedido do Clube Atlético Mineiro, em dezembro de 1917, de transferência de sua sede para a Avenida Afonso Pena, 748. O escudo do Galo, como se pode ver no ofício encaminhado, era bem diferente do atual.

SAIBA MAIS: defesa dos bons costumes
Durante o Império, a administração policial era de competência do Ministério da Justiça. Na corte e na capital da província, havia um chefe de polícia escolhido e nomeado pelo imperador entre os desembargadores e juízes de direito. Os delegados e subdelegados dos municípios e distritos eram nomeados pelos presidentes das províncias, sob a indicação do chefe de polícia, entre juízes, bacharéis ou pessoas idôneas. O chefe de polícia era responsável pela defesa dos bons costumes e pela manutenção da segurança e da ordem. A ele, competia também fazer o censo populacional da província com auxílio dos delegados, juízes de paz e párocos.

CRONOLOGIA

1842 – A Chefia de Polícia, que corresponde hoje à Polícia Civil, é criada durante o Império e fica vinculada ao Ministério da Justiça
1871 – Reforma Saião Lobato retira do chefe de Polícia a jurisdição sobre julgamento de crimes e infrações de “bem viver”, segurança e posturas. A partir deste ano, tornam-se atribuições do chefe de Polícia preparar o processo de crimes, proceder ao inquérito policial, realizar exame de corpo de delito, entre outras atividades. Os “termos de bem viver” eram assinados pelas prostitutas, vadios e desocupados que se comprometiam a mudar de vida e sair das ruas
1891 – Com a proclamação da República (1889), a Chefia de Polícia passa a ser vinculada à Secretaria do Interior
1926 – Criada a Secretaria de Estado de Segurança e Assistência Pública, que se torna responsável pelos serviços de polícia, assistência e saúde pública
1930 – Reforma administrativa extingue a Secretaria Estadual de Segurança e Assistência Pública e restabelece o cargo de chefe de Polícia, que fica vinculado novamente à Secretaria de Interior
1933 – As funções do chefe de Polícia passam a ser exercidas pelo secretário dos Negócios do Interior
1956 – Em maio, a Chefia de Polícia passa ser denominada Secretaria Estadual de Segurança e Assistência Pública

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