domingo, 29 de abril de 2012

A denominação “Polícia Judiciária” não se justifica mais

Garantismo Penal

O referente artigo tem como tema fato corriqueiro no dia a dia do exercício das funções do delegado de Polícia, magistrado ou membro do Ministério Público, qual seja o acesso aos autos do inquérito policial, inquérito penal judicial ou inquérito civil e o seu sigilo. Dentre as diversas atribuições das Autoridades no âmbito da presidência da investigação preliminar está o mister de manter seu sigilo, conforme art. 20 do Código de Processo Penal (CPP), a despeito dos atos de investigação documentados e já foram praticados, bem como os que estão documentados, mas em andamento e os que ainda irão ser praticados.
O tema sobre acesso autos do inquérito e a extensão do sigilo interno dos atos de investigação nunca foi tema pacífico e, justamente por isso, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se manifestar sobre o tema por diversas vezes, resultando na edição da Súmula Vinculante (SV) 14 de 2009.
Ainda assim, após a edição da súmula ainda verificamos negativa do acesso por questões outras controvertidas, surgindo dúvida à aplicabilidade do aludido verbete da Suprema Corte ensejando assim, diversos habeas corpus (HC) ao STF como por exemplo o HC 94173/BA,julgamento em  27/10/2009 e HC 87610/SC, julgamento em 27/10/2009.

Natureza Jurídica do Ato de Indeferimento de Acesso aos Autos
Os atos ou fatos ocorridos no curso de uma investigação estão elencados de forma exemplificativa nos art. 6º ao 10º do CPP. Segundo ElmirDuclerc[1] (DUCLERC, Elmir, 2011, p. 98 a 108) o inquérito policial é impulsionado através dos denominados atos de iniciação, atos de desenvolvimento e atos de conclusão. Ao comentar sobre os de desenvolvimento diz que o “[...] artigo 6º do CPP, mas também no artigo 7º, e em alguns textos de legislação extravagante [...] são a alma do inquérito policial e podem ser chamados propriamente de atos de investigação.”
Essa classificação dos atos de investigação não seguiu nenhuma sistemática como ocorreu na classificação dos atos processuais. Na verdade foi classificada em razão dos seus fins, mas acompanham a natureza administrativa do inquérito policial, que por ser discricionário não segue um rito sacro como ocorre nos procedimentos inerentes às fases da instrução processual.
Diferentemente do inquérito, os atos praticados no processo além de ter natureza administrativa têm natureza jurisdicional, por ser proferido pelo Estado-Juiz, e estão relacionados diretamente a um sistema recursal. Por isso, tiveram a necessidade de ter seus atos classificados pelo legislador em despacho, decisão interlocutória (simples ou mista; terminativa e não terminativa) e sentença, conforme a combinação dos art. 593, I e II e art. 800, I, II e III, todos do CPP.
Insta salientar, portanto, que a irrecorribilidade dos provimentos jurisdicionais não retira sua natureza decisória, pari passu, não será o princípio da irrecorribilidade reflexamente aplicável ao inquérito, que definirá se um ato é ou não decisório, mas sim, se terão o condão de colocar o investigado em posição jurídica de desvantagem. Neste sentido, os Tribunais já vêm reconhecendo a carga decisória de determinados atos de investigação, que são denominados na prática forense de forma simplória como “despachos”, no entanto, alguns atos não são meros despachos e sim decisões interlocutórias simples.
Em oportuno, vale destacar jurisprudência[2] neste sentido, com grifo nosso ipsis literis:
“A atuação da autoridade policial envolve considerável e relevante parcela de poder discricionário, daí a contingência de se investir o delegado de polícia de inegável feixe de atribuições decisórias em esfera administrativa. Se ao exercitar essa parcela de poder decisório, o delegado de polícia assim o faz de maneira fundamentada, neste passo atendendo ao comando constitucional, não pode ser responsabilizado criminalmente pelo teor e pelas razões de seu convencimento, que não hesitou em expor, estejam estas e aquele em substância corretos ou não.”
O código de processo penal por diversas passagens emprega de forma equivocada os termos “despacho” e “decisão”, no entanto é pacífico na doutrina este equívoco como ocorre a título de exemplo, no art. 67 do CPP[3], quando trata da decisão do arquivamento do inquérito policial, o legislador denomina de despacho; art. 273 do CPP[4], na qual o legislador dá sinais, inclusive de desconhecer por completo a classificação dos provimentos jurisdicionais, posto que num mesmo dispositivo ele trate o mesmo ato de despacho e ao final de decisão, sendo pacífico o entendimento de se tratar de uma decisão interlocutória simples, No mesmo sentido, os artigos 374, 375, 516, 578, §2º, 581, 584, §3º, 589, caput e seu parágrafo único, 640, 779 etc.

Com a lei 12.403/11, que alterou o regime das medidas cautelares foi realizado a devida correção no art. 315 do CPP, que em sua redação antiga de 1967[5] denominava de despacho o ato que decretava a prisão preventiva, corrigido na atual redação de 2011[6] pelo termo adequado a sua natureza jurídica de decisão interlocutória simples[7].
No âmbito do inquérito policial ocorreu a mesma situação no art. 5º, §2º[8] do CPP quando a autoridade policial indefere o requerimento de instauração de inquérito policial, cabendo recurso ao chefe de polícia, haja vista que este ato administrativo tem verdadeira natureza de decisão interlocutória mista terminativa face ao evidente óbice que o ato dará a instauração do inquérito policial.
Do Instrumento do Mandato 
Para ter acesso aos autos é necessário o instrumento de mandato para habilitar o defensor do investigado afim de consultar ou fotocopiar conteúdo, diante do e art. 133[9] da CRFB/88 e art. 7, XIV[10] da lei 8.906/94? Teria então, esta lei, de mesma hierarquia que o CPP, revogado o art. 20 deste?
O advogado do investigado para ter acesso aos autos deve apresentar que uma procuração para habilitá-lo a ter acesso à informação do conteúdo dos autos sob pena de indeferimento do requerimento, que a nosso ver deve ser fundamentada.
O sigilo do inquérito policial busca salvaguardar a intimidade do investigado, resguardando-se, assim, seu estado de inocência, art. 5º, LVII da CRFB. O sigilo não se estende ao representante do Ministério Público, nem à autoridade judiciária.
Não há necessidade de decretação do sigilo do inquérito policial, por uma razão muito simples, a própria lei assim o dispõe no art. 20 do CPP. A regra da publicidade, que também comporta ressalvas, é uma garantia do Estado Democrático de Direito e, consequentemente do devido processo legal, que está relacionada como regra geral a processo de qualquer natureza, conforme o art. 93, IX[11] da CRFB.
Em outras palavras a própria constituição prevê como caso de exceção a publicidade as hipóteses em que o caso venha a atingir outro direito constitucional da reserva da intimidade, que a toda evidência, o inquérito, apesar de não ser processo, está inserido na lista de situações em que a imagem do investigado, em regra, deva ser preservada.
Segundo Paulo Rangel o artigo 7.º, incisos XIV, da Lei nº. 8.906/94 não alcança o inquérito policial, pois “o caráter da inquisitoriedade veda qualquer intromissão do advogado no curso do inquérito.”[12]
Toda a celeuma sobre o acesso está justamente em conciliar o art. 93, IX, segunda parte da CRFBc/c art. 20 do CPP e o art. 133 da CRFB c/c art. 7.º, XIV do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (EOAB)
Para conciliar estas normas o STF, em 02/02/2009 editou a Súmula Vinculante nº 14, na qual garante o acesso ao investigado às peças já documentadas para o exercício do direito de defesa.
Assim, diante de mais uma fonte formal e direta (mesma natureza de lei em sentido lato sensu), mister a análise do verbete da súmula vinculante que trata sobre o acesso à defesa aos procedimentos que estão sobre sigilo, in verbis:
“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.[13]”
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Ruchester Marreiros Barbosa é delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, doutorando em Direito Penal pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina) e professor de processo penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 27 de abril de 2012

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