quinta-feira, 31 de maio de 2012

Na comemoração do cinquentenário de Hulk, cientistas dominam melhor os raios gama

Bruna Sensêve - Estado de Minas



Na comemoração do cinquentenário de Hulk, o temível papel da radiação gama na ficção científica poderá ser revisto. Foi em maio de 1962 que Bruce Banner transformou-se pela primeira vez na imensa besta verde, que dos quadrinhos conquistou espaço na televisão e no cinema. Sua transmutação foi justificada por uma exposição sem controle a uma bomba de raios gama. Agora, cinco décadas mais tarde, cientistas do Instituto Laue-Lagevin (ILL), na França, e da Universidade de Munique Ludwigs-Maximilians, na Alemanha, descobriram que essa forma de radiação pode ser mais bem manipulada e, com isso, possivelmente passar de “vilã” a “heroína”. As novas aplicações da descoberta incluem o diagnóstico e o tratamento mais aprimorado do câncer e a detecção remota de armamento nuclear.
O poder destrutivo da radiação gama é enfaticamente repetido na ficção científica desde Eu, robô, best-seller de Isaac Asimov publicado em 1950. A ideia difundida por obras como a do mestre da ficção científica – de que esses raios são poderosas forças energéticas que ultrapassam a capacidade de compreensão e controle do homem – contava, de maneira geral, com o respaldo da ciência até recentemente. O que os pesquisadores franceses e alemães fizeram foi desafiá-la. Para isso, a equipe liderada por Michael Jentschel utilizou uma versão aprimorada de um clássico experimento feito por Isaac Newton, em 1665, no qual ele utilizou um prisma para dividir a luz branca e mudar a direção de feixes de diferentes cores (leia Saiba mais).
No novo estudo, os raios gama produzidos por um equipamento conhecido como PN3 foram analisados por meio de dois cristais de silício. Num primeiro momento, foi necessário pré-selecioná-los ao sair do reator nuclear e direcioná-los como um feixe paralelo e estreito. Mais adiante, um prisma de silício foi posicionado para desviar metade do feixe de radiação. O desvio dessa parte do feixe pôde então ser detectada por um segundo cristal de silício e comparado à outra metade de raios gama, não desviada.
Entenda melhor a radiação gama
Entenda melhor a radiação gama

A análise registrou valores crescentes similares ao encontrado na luz visível e muito maiores que qualquer um dos pesquisadores presentes esperava. No entanto, os especialistas acreditam que ainda será necessário entender os pormenores do processo de interação.
“Para isso, vamos estudar a refração com materiais diferentes de forma que nos permita ver como o efeito se comporta. Nós esperamos que os resultados sejam muito mais aperfeiçoados se utilizarmos materiais como ouro ou tungstênio”, explica Jentschel.


Complexidade
O feito do time de pesquisadores não é nada banal. Isso porque redirecionar raios gama é uma tarefa extremamente complexa, devido à natureza dessa forma de radiação. Uma das maneiras de aumentar a intensidade de um raio de luz, por exemplo, é pela refração, usando lentes de vidro. Isso faz com que um feixe propagado no ar, ao incidir numa superfície de vidro, sofra um desvio, sendo redirecionado.
Já os raios X e raios gama possuem um comprimento de onda menor e são mais penetrantes, passando facilmente por lentes. Por esse motivo, a única forma eficaz de desviar raios X é por meio de outro fenômeno físico conhecido como difração. “Desviar raios X é muito mais difícil que simplesmente refratar os raios de luz. Por isso, esse desenvolvimento demorou tanto. Enquanto a refração óptica já era conhecida na Antiguidade, o princípio de difração de raios X só foi descoberta por William Bragg em 1912”, explica o professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), Ricardo Galvão.

Os raios gama, além de serem muito mais energéticos que os raios X, têm comprimento de onda ainda menor. Por isso, os modelos teóricos usuais previam que as ondas a eles associadas simplesmente passariam entre os átomos do meio material, sem interagir de forma coerente. Não deveria ser possível desviar sua direção por refração ou difração.

Familiarizado com a descoberta, Galvão conta que um dos líderes do grupo de pesquisa, Dietrich Habs, ainda não tem uma explicação definitiva para o resultado alcançado. “Uma de suas especulações é que os raios gama sejam desviados por elétrons e pósitrons ‘virtuais’, que podem existir por tempos muito curtos na vizinhança dos núcleos atômicos”, conta. Do ponto de vista do físico, embora o desvio obtido seja mínimo, qualquer um que já utilizou uma lente para focalizar os raios de luz do Sol e queimar uma folha de papel, pode imaginar as consequências de poder focalizar raios gama, milhões de vezes mais energéticos.

A potencialidade de aplicação da descoberta do time de Michael Jentschel está baseada nas habilidades que mais rotularam a radiação gama como um perigo: sua facilidade de penetração, inclusive em grossas camadas de aço, e o fato de poderem se diferenciar entre os isótopos do mesmo elemento. Isótopos são átomos com a mesma estrutura eletrônica, mas diferentes núcleos atômicos. Essas propriedades poderão ser usadas para a caracterização remota de materiais nucleares, examinando navios e caminhões, ou ainda para a análise e monitoramento de resíduos nucleares em contêineres seguros, sem a necessidade de abri-los.

Para o diagnóstico do câncer, a diferenciação entre isótopos será o principal elemento. A partir da utilização de raios gama, será possível ter modelos químicos idênticos, mas classificá-los isotopicamente. Dessa forma, exames poderão ser feitos com o preenchimento de órgãos cancerígenos por isótopos raros na natureza e inofensivos ao organismo. Estrutura similar poderia ser estudada para a destruição das células cancerígenas.

DUAS PERGUNTAS PARA O FÍSICO MICHEL JENTSCHEL
Como serão conduzidos os estudos nesse novo campo?
Os estudos foram direcionados pela motivação de construir uma fonte de raios gama que possibilite, seletivamente, excitarum isótopo em uma amostra sem tocar todos os outros. Para isso, é necessário excitar o núcleo atômico. Isso é diferente dos raios X, da luz  dos raios ultravioleta, porque eles interagem essencialmente com elétrons.

E como pode ajudar  tratamento do câncer?
Como exemplo podemos usar a água. Na natureza, 99,6% do oxigênio têm massa 16. Nós podemos criar um modelo com uma massa 17. Quimicamente é o mesmo elemento; se você ingeri-lo, seu corpo vai aceitá-lo como água normal.
No entanto, a excitação das energias nucleares do oxigênio 16 e 17 são diferentes. Então, se uma amostra contém água com oxigênio 17, vamos encontrá-lo facilmente em um copo com água com maioria de oxigênio 16. Se uma pessoa é irradiada com raios gama,odepósito de energia no seu corpo é muito menor se comparado aos raios X, porque eles interagem facilmente com porções muito pequenas. Porém, no caso do câncer, é necessário “preencher” um órgão com um isótopo normalmente raro. Voltemos ao oxigênio  e imaginemos que todos os outros órgãos terão oxigênio 16. Se radiarmos o paciente com raios gama correspondente à excitação do oxigênio 17, uma reação nuclear será induzida, mas estaremos depositando uma energia inofensiva em seu organismo. Eu posso ver o órgão com câncer sem ver o resto. De forma similar, podemos pensar em destruir o câncer.

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