BBC Brasil
"Foto: João Fellet/BBC Brasil"
Na
estrada de terra que cruza as prósperas plantações de soja e milho de
fazendeiros brasileiros em Ñacunday, no sudeste do Paraguai, a monotonia
da paisagem é bruscamente alterada por um gigantesco acampamento no
alto de um morro, de onde emanam torres de fumaça.
Lá, numa área
reclamada pelo catarinense Tranquilo Favero, conhecido no país como 'o
rei da soja', 5.000 famílias de trabalhadores sem-terra se instalaram em
barracas há oito meses para pressionar o governo a lhes conceder
porções de terra na região.
À entrada do acampamento, um sinal de
que a convivência entre o grupo e o produtor de soja não anda muito boa:
preso a uma forca, um boneco teve o nome Favero estampado em seu peito.
Abaixo da inscrição, um recado ao fazendeiro: 'vai morrer assim'.
A
tensão entre sem-terra e 'brasiguaios' (como são chamados os cerca de
350 mil brasileiros e seus descendentes que começaram a migrar para o
Paraguai em busca de terras baratas nos anos 60) alcança seu ápice em
Ñacunday e explica por que a maioria da comunidade apoiou o impeachment
do presidente paraguaio Fernando Lugo, na última sexta-feira.
Primeiro
presidente esquerdista na história recente do Paraguai, Lugo era
apontado por grandes proprietários de terra como um aliado dos
sem-terra. Segundo fazendeiros 'brasiguaios', enquanto permaneceu no
cargo, ele estimulou ocupações, o que teria provocado uma escalada na
violência no campo.
Já os sem-terra dizem que simplesmente
intensificaram seus esforços para conquistar parte das terras ocupadas
'ilegalmente' pelos brasileiros durante a ditadura de Alfredo Stroessner
(1954-1989).
Mortes
Em 15 de junho, um tiroteio durante uma
ação de reintegração de posse na fazenda de um paraguaio em Curuguaty,
ao norte de Ñacunday, provocou a morte de 11 sem-terra e seis policiais.
O episódio foi citado por congressistas paraguaios como uma mostra de
que Lugo perdera o controle dos conflitos agrários. A matança foi um dos
argumentos dos parlamentares para destituí-lo, na última sexta-feira.
Para
os sem-terra, porém, o confronto em Curuguaty foi desencadeado por
'mercenários contratados', que haviam se escondido entre as árvores sem o
conhecimento do grupo nem dos policiais. Segundo os 'carperos', como os
sem-terra são chamados no Paraguai por viverem em 'carpas' (barracas), a
ação foi armada por poderosos descontentes com o governo Lugo para
desestabilizá-lo.
A queda do ex-bispo e a posse do novo
presidente, Federico Franco, político à direita do antecessor, gerou
apreensão entre a maioria dos líderes sem-terra. Em Ñacunday, eles temem
que a mudança fortaleça os 'brasiguaios' na disputa, que nos últimos
meses ganhou contornos macabros.
No início de maio, o fazendeiro
brasileiro Fábio Ruffato, de 35 anos, e seu pai, Valmir Ruffato, 53,
foram presos acusados de assassinar três sem-terra que pescavam em sua
propriedade. Após serem mortos por tiros, Javier, 25, Justo César, 21, e
Oscar Alfredo, de 19, foram estripados.
O advogado Alfredo Maggi,
que defende a dupla brasileira, afirma que Fábio confessou o crime, mas
que seu pai é inocente. Segundo ele, o brasileiro alegou ter sido
provocado anteriormente pelo trio, que já teria entrado na fazenda sem
permissão outras vezes. Se condenado, diz o advogado, Fábio pode passar
até 25 anos na cadeia.
Segundo Federico Ayala, líder do
assentamento Santa Lucia, em Ñacunday, outros dois 'carperos' foram
mortos por 'brasiguaios' na região nos últimos meses. Ele diz que um
jovem foi atropelado propositalmente por um caminhão de Favero, e que
outro foi alvejado enquanto passava por uma de suas propriedades.
'Todo brasileiro na área é inimigo dos camponeses. Eles estão aqui ilegalmente, são usurpadores', afirma Ayala.
Para
Guillermo Duarte, advogado de Favero, as acusações do líder sem-terra
'são descabidas, temerárias e deveriam ser feitas ao Ministério
Público'.
'Essa confusão toda se gerou porque o ex-presidente
(Lugo) os enganou, induzindo-os a invadir aquela terra. Mas é uma
propriedade privada, que estava prestes a ser cultivada.'
Duarte
rebate também a acusação de que Favero não detém o título da terra. 'Os
títulos foram apresentados ao juiz, e não aos sem-terra. Por isso a
ordem de despejo foi emitida'. O advogado diz esperar que, com a troca
no governo, a ação 'se cumpra imediatamente'.
Nem todos os líderes
sem-terra, porém, adotam discurso tão inflamado contra os
'brasiguaios'. Principal dirigente da Liga Nacional de Carperos (LNC),
um dos maiores movimentos sem-terra paraguaios, José Rodríguez diz à BBC
Brasil que 'para nós não existem brasiguaios'.
'Ou são
brasileiros, ou são paraguaios. Não somos contra os brasileiros
legalmente estabelecidos no Paraguai, mas sim contra a outorga ilegal de
terras a estrangeiros'.
Segundo ele, porém, 'lamentavelmente os brasileiros são a maioria entre esse grupo'.
'Eles
se assumem como brasileiros ou paraguaios conforme a conveniência. E
tentam difundir a falsa ideia de que somos xenófobos'.
'Todos têm títulos'
Representante
jurídica dos 'brasiguaios' e assessora do Itamaraty, a advogada
'brasiguaia' Marilene Sguarizi nega que haja brasileiros estabelecidos
ilegalmente no Paraguai. 'Todos os colonos brasileiros têm títulos'. Ela
diz, no entanto, que em parte das contendas entre 'brasiguaios' e
sem-terra estão em disputa áreas adjacentes às terras tituladas.
Segundo
ela, embora as áreas pertençam ao Estado e sejam reclamadas pelos
sem-terra, os brasileiros investiram nelas e merecem, portanto,
continuar ocupando-as.
Ela afirma ainda que outros conflitos se
dão em terras ocupadas pelos brasileiros que tiveram títulos duplicados
por 'máfias'. Nesses casos, a advogada também argumenta que, por terem
tornado produtivas terras inóspitas, os brasileiros detêm a primazia de
cultivá-las.
'A contribuição dos colonos brasileiros fez com que o
Paraguai se tornasse o quarto maior produtor de grãos do mundo', ela
afirma. 'Nossa produção contribui com 23% da economia do país'.
'Os
brasileiros escolheram este país para criar seus filhos e netos', diz
Sguarizi. 'Estamos economicamente bem. Não queremos voltar e não vamos
voltar.'
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