sexta-feira, 1 de junho de 2012

Galeria do Ouvidor fará revitalização para a Copa. Marco histórico de novos comportamentos, primeiro centro de compras da capital mantém tradições da década de 1960 e, às vésperas dos 50 anos, prepara mudanças

Jefferson da Fonseca Coutinho - Estado de Minas
Publicação: 01/06/2012 06:00 Atualização: 01/06/2012 06:45

Nas décadas de 1960 e 1970, muita gente vinha do interior de Minas para passear nas escadas rolantes e fazer compras nos seis andares do prédio (Jackson Romanelli/EM/D.A Press)
Nas décadas de 1960 e 1970, muita gente vinha do interior de Minas para passear nas escadas rolantes e fazer compras nos seis andares do prédio

O documento de compra amarelado, puído nas bordas, datado de 10 de abril de 1963, é uma das preciosidades guardadas com carinho pelo colecionador Sebastião Ribeiro, de 85 anos, da Filatélica Globo. Recordação particular entre milhares de selos de todo o mundo. Marco histórico do negócio que há meio século mudou a vida do filho da italiana Aida Sequine e de dezenas de muitos comerciantes de Belo Horizonte. A linha do tempo do filatelista, nascido em Três Corações, no Sul de Minas, teve ponto alto com a inauguração da Galeria Ouvidor, em 1964, primeiro grande centro lojista da capital – endereço emblemático da Região Central. Foi quando Sebastião apostou no futuro físico do comércio: o shopping center. “Foi um acontecimento. A cidade inteira vinha passear na galeria. As pessoas vinham do interior, com toda a família, só para andar de escada rolante”, relembra, saudoso. Às vesperas de completar 50 anos, um dos pontos comerciais mais queridos dos mineiros, envelhecido, se movimenta em busca de apoio para ser revitalizado até a Copa do Mundo de 2014.


Sebastião deixou a vida de caixeiro e em 1964 abriu negócio na galeria
Sebastião deixou a vida de caixeiro e em 1964 abriu negócio na galeria (Jackson Romanelli/EM/D.A Press)Na época, com os três filhos pequenos, de colo, Sebastião Ribeiro entendeu que era hora de deixar a vida de caixeiro viajante para fixar raízes e cuidar dos descendentes. Elegante com seu paletó xadrez, de humor e lucidez contagiantes, o comerciante demonstra a boa amizade conquistada ali, no segundo andar. Gilmar de Souza Oliveira, de 50, vizinho balconista, faz visita de cortesia. “O melhor aqui são as amizades sinceras”, diz o colega, desde 2002 na galeria. “Se quiser ouvir uma carioca bonita é só conversar com aquela moça ali.” O filatelista aponta para Jéssica Ferreira de Souza, de 22, nascida na Baixada Fluminense, em Senador Camará, atualmente morando em Vespasiano, na Grande BH. “Aqui, todo mundo é amigo de todo mundo. Somos uma família”, confirma a bela e sorridente carioca. Para o encarregado de serviços gerais José de Oliveira, funcionário mais antigo do condomínio, ali “há uma família que se ampara”.


Deotínio Amaral comandou por 22 anos a administração do complexo
Deotínio Amaral comandou por 22 anos a administração do complexo (Jackson Romanelli/EM/D.A Press) No turno da noite, das 23h às 7h, desde 29 de agosto de 1985, José destaca o respeito mútuo entre todos da família Ouvidor. “Uma cidade dentro da nossa cidade”, diz o slogan criado há 10 anos pelo administrador Deotínio Amaral, de 76, presidente do conselho fiscal e consultivo. “A frase veio de uma conversa com o prefeito Célio de Castro. Representa bem a riqueza e a diversidade que temos aqui”, considera. E também as dificuldades. Deotínio, que por 22 anos esteve à frente da administração do complexo, reconhece: “O maior problema, a maior dificuldade, é lidar com alguns interesses pessoais”. No entanto, a paixão pelo lugar, desde 1968, não deixa espaço para aborrecimentos. Deotinio cita com admiração as famílias Kubitschek, Mancini e Mohamed, Hardi, Farah, Morici, de Marco, Xavier, Moura e Machado Mourão, responsáveis pela edificação da galeria, com acesso pelas ruas São Paulo e Curitiba.
Bem perto de comemorar 50 anos, os desafios da Galeria do Ouvidor são grandes. Para o síndico Valter Faustino da Silva, de 56, Belo Horizonte cresceu e o prédio precisa acompanhar os avanços da capital. Os dois elevadores e as quatro escadas rolantes não atendem bem os cerca de 40 mil clientes por dia que circulam pelos seis andares do endereço. “Nossa principal meta é a revitalização. Estamos trabalhando em busca de parceiros com recursos para uma ampla reforma em toda a área comum da galeria”, anuncia. Valter, na companhia da encarregada administrativa Cristiane Gisele Siqueira, de 27, explica projeto sob a responsabilidade da arquiteta Débora Mendes. O síndico acredita que, com o enorme potencial do ponto, não vai ser difícil agregar empresários de visão e sensibilidade para a empreitada.

Na primeira fase – que a administração espera ver concluída até o ano que vem –, estão previstas obras de implantação de duas escadas rolantes, ao custo aproximado de R$ 500 mil. O síndico ressalta os cuidados com a segurança estrutural do edifício para a reforma e pontua detalhes do planejamento. Segundo ele, cálculo feito por especialistas traça as vantagens matemáticas das escadas rolantes em relação aos elevadores. Uma escada de um metro de largura pode transportar até 9 mil pessoas por hora, enquanto um elevador, com capacidade para 700kg, dá conta de apenas 600 usuários. “Sem falar nas vantagens comerciais, já que na escada rolante o consumidor tem acesso visual às lojas e acaba se lembrando de algo que ele gostaria de comprar”, diz Valter Faustino.


Novos costumes

Ao longo dos tempos, a Galeria do Ouvidor testemunhou transformações na moda e nos costumes da família mineira. Em quase 50 anos, acompanhou dias de glória para confecções, artesanatos em couro, prata e ouro, jeans e bijuterias, e hoje vê crescer ainda mais a força dos produtos para a fabricação de bijuterias e artesanatos. O primeiro salão unissex da capital marcou o fim dos anos 1960 no célebre endereço entre as ruas São Paulo e Curitiba. Nero Almeida, de 65, cabeleireiro desde os 20 anos, apostou na diferença, venceu preconceitos e foi reconhecido cidadão honorário de Belo Horizonte. “Fui o primeiro homossexual a receber esse título numa cidade brasileira”, conta.

“Aqui no salão, de melhor, a educação, o capricho… tudo. O Nero é excelente profissional. Há 20 anos sou freguesa dele”, elogia, satisfeita com o novo trato no cabelo, Conceição Rodrigues, de 63, moradora de São Sebastião das Águas Claras, em Nova Lima. A cada dois meses, ao menos, a cozinheira do Bar do Marcinho corta a cidade pela hora marcada com o moço que levou os homens às salas de beleza de Minas. A metros do salão do Nero, casal maduro, abraçado, olha vitrine picante. O homem de bigode cochicha algo no ouvido da mulher, que acha graça e dá-lhe tapinha nas costas. Abordados, esquivam-se serelepes: “A gente está só olhando”. Deixam a cena a passos apressados.

No balcão do Êxtase Sex Shop, Maria José Soares, de 58, comenta que, apesar dos mais “avergonhados”, os casais de Belo Horizonte “estão com a cabeça mais aberta”. Conta que todos os produtos têm boa saída. Das roupinhas especiais aos acessórios mais indecentes, vale tudo para “não deixar esfriar o amor”. “É um incremento que eles dão ao relacionamento para sair da rotina”, considera. “O negócio já foi muito bom, mas com a concorrência enfraqueceu um pouco”, diz Maria José, há 30 anos no prédio comercial, dez deles dedicados na loja de sex shop da filha. “‘Nunca entrei numa loja dessas, não… vim só pra conhecer, viu!?’; ‘Ah, vim comprar pra uma amiga’ e ‘Um amigo pediu pra eu olhar o preço…’ É o que a gente mais escuta aqui”, diverte-se. Do gênero, são dez as lojas especializadas na Galeria do Ouvidor.
 (Gilvando Soares/EM/D.A Press -12/7/95)

OUTROS TEMPOS: LP, boca de sino, pastel e escada rolante

O Centro da cidade, mais do que referência, era obrigação para os garotos que estudavam no velho Colégio Anchieta. A Galeria do Ouvidor, poderia-se dizer, referência obrigatória. Se sobrava uma graninha para comprar um LP, o estreito prédio com entradas pelas ruas São Paulo e Curitiba estava ali na mão (Raul, o goleiro e ídolo do Cruzeiro, já não tinha mais loja de discos no pedaço). Dezenas de alfaiates estabelecidos no local transformavam em calças bocas de sino os tecidos que lhes apresentavam às centenas. O tradicional pastel na diminuta lanchonete era de lei. Mesmo porque a palavra colesterol estava entre as menos procuradas nos dicionários. Até hoje, em espaço ampliado, a iguaria está lá a convidar os saudosistas. O Nero cabeleireiro era atração naquele início dos anos 1970, pela vasta cabeleira e pelos trejeitos – à época, acreditem, era um tipo incomum. Relojoarias, livrarias, papelarias, casas de bijuterias compunham aquele simpático precursor dos shoppings populares. Bons tempos em que até escada rolante fazia sucesso! Afinal, havia poucas em Belo Horizonte. E a Ouvidor tinha logo duas! (Cláudio Arreguy)
 

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