domingo, 24 de junho de 2012

Nova lei penal exclui crimes, "cria" outros e muda punições

Publicado no Jornal OTEMPO em 24/06/2012

JOELMIR TAVARES - O Tempo
Carregar maconha para consumo próprio deixará de ser crime, enquanto o abandono de um cachorro na rua passará a ser criminalizado e um servidor público condenado por abuso de autoridade poderá ficar até cinco anos preso, em vez de pegar no máximo seis meses de detenção, como acontece hoje.
As propostas, que fazem parte do anteprojeto do novo Código Penal brasileiro, são uma mostra das mudanças que estão a caminho caso o Congresso Nacional aprove o texto que uma comissão de juristas vai entregar, na quarta-feira, ao Senado.

Com a exclusão de alguns crimes, a "criação" de outros e mudanças no regime de punições, o país terá uma legislação mais adequada para os dias de hoje, já que o código vigente foi escrito em 1940 - quando, por exemplo, quem ia ao restaurante sem dinheiro para pagar poderia responder por um crime.

Pequenas mudanças feitas ao longo do tempo acabaram criando um conjunto de leis penais incoerente: erros leves são punidos com rigidez e crimes graves com penas brandas.

"É uma necessidade urgente atualizar o código", ressalta o procurador da República Luiz Carlos Gonçalves, relator da comissão de 15 especialistas em direito e que elaborou o anteprojeto da nova legislação. O documento, com 300 páginas, será entregue nesta semana ao presidente do Senado, José Sarney.

A partir daí, as mudanças começarão a ser analisadas e votadas pelos senadores e, em seguida, pelos deputados federais. O texto deve sofrer alterações antes de ser aprovado. O processo poderá levar anos, já que as discussões envolvem quebra de tabus e esbarram em temas ideológicos, religiosos e científicos. E a proximidade das eleições municipais leva a crer que o novo código só deve entrar na pauta do Congresso no ano que vem.

Assuntos como transformação do racismo em crime hediondo, controle maior sobre enriquecimento ilícito e liberação do aborto até a 12ª semana de gravidez prometem causar polêmica. "Temos muito orgulho do anteprojeto. Congressistas e sociedade devem aprofundar as discussões", diz Luiz Carlos Gonçalves.

Lentidão
Outras tentativas de reforma na legislação fracassaram
A reformulação do Código Penal é cobrada há décadas. Com as mudanças no jeito de viver, pensar e agir dos brasileiros, a legislação que define o que é crime no país - escrita em 1940 e vigente desde 1942 - ficou ultrapassada. Em 1969, houve uma tentativa de substituir o código, mas as críticas foram tantas que ele só foi modificado parcialmente, com uma lei de 1973. Depois de vários adiamentos para o começo da vigência, veio uma outra norma, de 1978, que revogou o texto aprovado.
Após o fracasso, foi criada em 1980 uma comissão para elaborar a reforma de parte do código. O trabalho do grupo resultou, em 1984, na atualização de diversos artigos. A última atualização foi em 2009, com a alteração da lei sobre crimes sexuais. O atentado violento ao pudor, por exemplo, foi extinto. (JT)
Mudanças provocam polêmica
Joelmir Tavares
Durante sete meses, os 15 juristas nomeados pelo presidente do Senado, José Sarney, para elaborar o anteprojeto do novo Código Penal debateram as mudanças necessárias para atualizar a legislação. O texto, concluído na segunda-feira passada pelos advogados, juízes e professores, já é alvo de críticas.
Especialistas apontam um suposto exagero nas criminalizações. Pela proposta da comissão, por exemplo, bullying vai virar crime – que será punido com um a quatro anos de prisão, no caso de adultos, e com medidas socioeducativas para menores de idade.
Os autores rebatem os comentários. "Não saímos criminalizando a torto e a direito. Houve método. No geral, nós descriminalizamos muito mais do que criminalizamos", afirma o procurador da República Luiz Carlos Gonçalves, relator do grupo. Ele lembra que houve divergências e pontos de vista diferentes até dentro da própria equipe. Muitas questões foram decididas por votação, já que não houve consenso. "O texto contempla múltiplas vozes".
Outro defeito colocado no anteprojeto é o endurecimento de penas, que poderia levar ainda mais gente para a cadeia. No entanto, segundo o advogado criminalista Marcelo Leonardo, único mineiro no grupo de autores, a crítica é infundada. "Não existe isso. A comissão levou em conta a superlotação carcerária no Brasil. Prender mais não é a solução para nossos problemas",
explica.
Para o advogado, os comentários são bem-vindos e podem estimular o debate entre os senadores e deputados. "Qualquer projeto como esse (reforma do Código Penal) envolve polêmica, por razões de ordem filosófica, religiosa e econômica. Fizemos um trabalho que está sujeito a críticas. Não é obra pronta e acabada", diz.
Trabalho. O grupo que elaborou o texto começou os trabalhos em setembro. As reuniões em Brasília, antes mensais, passaram a ser semanais nos últimos meses. Também houve audiências públicas em São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Porto Alegre (RS), Cuiabá (MT) e Aracaju (SE).

Os juristas não receberam pela atividade, mas gastos com viagens, alimentação e hospedagem foram pagos pelo Senado. "Entendi que eu tinha uma contribuição para dar", conta Marcelo Leonardo, que atua na advocacia criminal há 35 anos e tem entre seus clientes o publicitário Marcos Valério, réu no caso do mensalão, e o empresário e político Antério Mânica, um dos acusados da chacina de Unaí.
Contra
"O Brasil vai virar um Irã"
José Luiz de Magalhães
Professor de direito constitucional da UFMG e da PUC Minas
A atualização do Código Penal é necessária, mas peca no exagero de criminalizações e no endurecimento de punições. O ideal seria priorizar penas alternativas e investir em educação.
Quanto mais rigorosa é a lei, mais cruéis são os crimes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a violência não diminuiu nos Estados onde há pena de morte. Além disso, os crimes passaram a ser cometidos com mais agressividade.
É preciso combater a causa dos problemas – que, no Brasil, é a forte desigualdade social –, em vez de impor mais regras.
Em um primeiro momento, a repressão até reduz a criminalidade e dá uma aparente sensação de segurança. Mas, enquanto o Estado não atacar o fato gerador, continuará havendo tentativas de quebra da legalidade.
É uma corrida de cão e gato. Das duas, uma: ou o Estado desiste de reprimir o crime ou extermina a liberdade do cidadão, com vigilância extremada. É o caminho para uma sociedade fascista. Estamos brincando com fogo. Daqui a pouco, o Brasil vai virar um Irã.
A favor
"O texto traz muitos progressos"
Marcelo Sarsur
Doutorando em direito penal e professor da PUC Minas
Há mais pontos positivos do que negativos no anteprojeto do Código Penal. Não é fácil chegar a um consenso em torno de todos os itens. Certas mudanças são polêmicas, mas é salutar que haja um debate em torno delas.
O texto em vigência, de 1940, envelheceu. As modificações propostas deixam a legislação mais clara e adequada para o Brasil de hoje. Tortura, terrorismo e crimes ambientais e tributários, por exemplo, estão fora do código atual.
Reformas pontuais, como a que reorganizou os crimes sexuais, em 2009, destoaram do resto. E o código tem que fazer sentido como um todo.
O novo texto traz muitos progressos. Agora temos de crer que será bem discutido no Congresso. O temor é que se perca um projeto muito bom em razão de divergências pontuais. Senadores e deputados terão que buscar o equilíbrio.
Não se pode pensar que a aprovação do novo código basta. Lei sozinha não faz a máquina do Judiciário andar. O que gera menos impunidade é o funcionamento eficaz da Justiça.
Minientrevista
"Espero que o Congresso busque o consenso"
Marcelo Leonardo
Advogado e um dos autores do anteprojeto
Que avaliação o senhor faz do trabalho da comissão?Fizemos um esforço de transformar o Código Penal no efetivo centro do sistema da legislação penal brasileira e incorporamos a ele parte das 199 leis especiais criadas ao longo dos últimos 30 anos, que não estão contempladas no texto atual.
Por que a atualização é necessária?O código foi concebido para um Brasil muito mais rural do que urbano. Os padrões de valor hoje são outros. Além disso, surgiram crimes, como, por exemplo, as fraudes cibernéticas.
O código ficará mais duro?Estão previstos aumentos de penas em alguns casos e reduções em outros. Não houve uma orientação predominante.

A comissão se baseou em quais parâmetros?Na realidade brasileira e em exemplos internacionais. A descriminalização da posse de drogas, por exemplo, é uma tendência mundial.
O que o senhor espera agora?Que o Congresso busque o consenso. Se não houver esse esforço, pode ser mais uma experiência que virá a se frustrar. (JT)

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