terça-feira, 3 de julho de 2012

CeasaMinas se transforma em paraíso da sonegação

Operação aponta esquema fraudulento que lesou os cofres públicos em mais de R$ 2 bilhões nos últimos 10 anos, usando notas frias e empresas montadas em nome de laranjas e fantasmas

Pedro Rocha Franco -Estado de Minas
Publicação: 03/07/2012 06:00 Atualização: 03/07/2012 07:22

A conhecida história da maçã podre que contamina as demais do cesto foi formulada há sabe-se lá quanto tempo, mas retrata com precisão o que se passa no entreposto da CeasaMinas, em Contagem, na Grande BH, e em suas imediações. A unidade é apontada como um dos principais focos de sonegação fiscal de Minas, e não se trata de casos isolados. Em uma década, mais de 1 mil empresas de fachada e com outras irregularidades foram suspensas ou canceladas por órgãos fiscalizadores, segundo levantamento da Secretaria de Estado da Fazenda, tendo causado prejuízo superior a R$ 2 bilhões.
O principal golpe apurado é a constituição de empresas falsas para que, a partir delas, fossem feitas operações fraudulentas, como a transferência de créditos fiscais de firmas fantasmas para benefício de outras, regulares. A fraude pode usar empresas recém-criadas ou usar outras, há anos inativas, para emissão de documentação falsa. O resultado é que os empresários que recebem as notas dessas firmas se beneficiam com o crédito de impostos em negociações forjadas e, com isso, conseguem eliminar concorrentes. Por isso, há pouco mais de um ano, o Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa da Ordem Econômica e Tributária (Caoet), do Ministério Público, coordenado pelo promotor Renato Froes, criou, em parceria com a Receita Estadual e a Polícia Civil, uma força-tarefa para combater a sonegação fiscal no entreposto e suas proximidades. De lá para cá, nove pessoas foram presas e 30 indiciadas por crimes fiscais relacionados à Ceasa. No ano passado, outras oito pessoas também foram presas por suspeita de fraudar o pagamento de impostos durante a Operação Laranja-lima, sendo que empresas instaladas na Ceasa estavam ligadas ao esquema.
Tudo falso
Depois de terem sido emitidas centenas de notas fiscais que beneficiaram atacadistas da CeasaMinas, a fiscalização suspendeu a operação da Maxsuper Indústria e Comércio Ltda. Usando a carteira de identidade de Geralda da Conceição Andrade Torres, um laranja conseguiu reativar a empresa. Mas, dada a movimentação milionária em curto período de tempo – o desfalque aos cofres públicos é estimado em R$ 35 milhões –, os fiscais suspeitaram da fraude e deram início à investigação. Quando conseguiram mandado de prisão contra Geralda, confirmaram que ela não existia e, pouco depois, a empresa, que funcionava no Bairro São Salvador, em Belo Horizonte, foi fechada. Com isso, as autoridades tiveram que recomeçar os trabalhos para identificar os reais sócios. Essa é a tarefa considerada mais árdua e, muitas vezes, não se tem êxito, ficando o rombo descoberto. No caso da Maxsuper, foi possível indiciar os irmãos Cláudio e Carlos Stein Pena por falsidade ideológica.


Fachada do imóvel no Bairro São Salvador, em Belo Horizonte, onde funcionaria a Mult Lux, empresa criada para sustentar esquema ligado à Ceasa (Jair Amaral/EM/D.A Press.)
Fachada do imóvel no Bairro São Salvador, em Belo Horizonte, onde funcionaria a Mult Lux, empresa criada para sustentar esquema ligado à Ceasa

Outro caso de atuação irregular teria envolvido a Comercial Mult Lux Ltda. A empresa seria comandada por dois laranjas: Aléxis Bruno de Oliveira e Michelle Cristina de Oliveira, que, segundo as investigações, não apresentariam condições financeiras de serem os verdadeiros proprietários. Os dois residiam em barracões no Aglomerado Vila da Paz. No período de abril a setembro de 2010, eles teriam emitido 517 notas fiscais, que, somadas, ultrapassam R$ 40 milhões. Mas não teriam pago qualquer quantia referente ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), tendo fechado as portas no mesmo ano. O prejuízo estimado aos cofres públicos estaduais é de R$ 4,5 milhões.

Rotatividade

Levantamento feito pela Secretaria de Estado da Fazenda mostra que, em Contagem, no período de 2007 a 2011, foram criadas 1.093 empresas do ramo de comércio atacadista. No mesmo período, foram finalizadas 1.042. O dado comprova a alta rotatividade do segmento e, segundo o governo, praticamente todas essas empresas estão ligadas à unidade da CeasaMinas da cidade. Em outros setores, a proporção entre empresas abertas e fechadas é bem superior. No varejo, por exemplo, foram criadas 6.086 e finalizadas 3.760 na cidade. “O turnover (rotatividade) é muito superior no atacado. É preciso barrar a abertura de empresas em nome de laranjas e fantasmas”, afirma o auditor fiscal da Receita Estadual Djalma França.

Para isso, toda empresa que dá entrada com documentação para abertura é imediatamente investigada, sendo sanado qualquer princípio de irregularidade que paire sobre a papelada. A Receita tem tido olhar clínico sobre empresas do setor atacadista que se instalam próximo ao entreposto – o foco da força-tarefa não se restringe à Ceasa. A mudança de tratamento é semelhante à adotada pelo órgão no começo dos anos 2000 em relação ao segmento de combustíveis. À época, o rombo causado pelas revendas era imenso e prejudicava o setor. “O controle é feito de acordo com o tipo de atividade. No caso dos atacadistas, o controle está mais rigoroso. É como se tivéssemos adotado sistema parecido ao aduaneiro da Receita Federal. Estamos com o canal amarelo ligado”, afirma o superintendente de Fiscalização da Secretaria de Estado da Fazenda, Anderson Félix.

O Estado de Minas entrou em contato com a administração da CeasaMinas, que disse apenas que o poder de fiscalizar os comerciantes não cabe ao entreposto, sendo responsabilidade do estado e da União. Já a Associação Comercial da CeasaMinas (Acceasa), depois de saber o assunto da reportagem, não atendeu mais às chamadas até o fechamento da edição.

Exploração da miséria

Eles moram em periferias, mas se dizem responsáveis por empresas que movimentam milhões de reais por mês. Aliciados por empresários, aceitam participar de enormes redes de sonegação em troca de “salários” irrisórios se comparados ao prejuízo causado aos cofres públicos. Por ganhos de até R$ 5 mil, assumem a titularidade de empresas inidôneas, que inundam os atacadistas de notas frias, favorecendo-os com os créditos de impostos, e, na hora que a fiscalização bate em sua porta, assumem toda a irregularidade, mas, por não possuir patrimônio declarado, acaba impune.

O sócio de uma empresa suspeita de sonegar R$ 7 milhões foi identificado como eletricista de uma terceirizada da Cemig, tendo, inclusive, a carteira de trabalho assinada pelo empregador. O suspeito foi indiciado por falsidade ideológica e, caso condenado, pode ficar preso por até cinco anos. Exemplos como esse se repetem aos montes.

Diante do prejuízo, a estratégia adotada pelos órgãos de combate à sonegação é tentar identificar os nomes dos verdadeiros donos das empresas. Com isso, seria possível acioná-los judicialmente. Uma dificuldade é que boa parte dessas transações são feitas em dinheiro vivo, o que protege os dados dos envolvidos. Há casos de notas fiscais superiores a R$ 100 mil. Caso essa negociação fosse feita por transferência bancária, seria possível saber a origem e o destino do montante.

Além disso, a Receita Estadual tem atuado para cancelar créditos tributários oriundos de operações fraudulentas. Nesse caso, o crédito de ICMS acumulado é estornado. Tais procedimentos são feitos com a ajuda de profissionais que também entram na lista de possíveis integrantes das redes de sonegação. “Tentamos identificar contadores e advogados ligados à rede para denunciá-los aos seus respectivos conselhos”, afirma o auditor fiscal da Receita Estadual Djalma França.

Aliados

Inicialmente, o rigor na fiscalização era visto com ressalvas pelos comerciantes do entreposto. No entanto, segundo os integrantes da força-tarefa, muitos perceberam que a atuação irregular causa prejuízo para o conjunto de empresas. Inclusive, o efeito teria sido a entrada de outros comerciantes no esquema de sonegação. Com as operações fraudulentas, aqueles que atuavam legalmente se viam prejudicados por uma concorrência desleal e, por consequência, muitos eram obrigados a procurar métodos também fraudulentos para manter seus negócios de pé. Assim, a tendência era de que todas as “maçãs” fossem contaminadas. “Nosso objetivo é regularizar totalmente a Ceasa. E já contamos com a colaboração dos bons empresários, que, por se sentirem prejudicados com os sonegadores, os estão denunciando à força-tarefa”, afirma o promotor Renato Froes.

MEMÓRIA

Adulteração e morte

Na década passada, o setor de revenda e distribuição de combustíveis era apontado como um dos mais problemáticos do estado. Empresários do ramo faziam de tudo para tentar eliminar a concorrência. Valia desde a sonegação fiscal atéa a dulteração do produto. A disputa culminou, em 2002, no assassinato do promotor de Justiça Francisco José Lins do Rêgo, responsável por investigar uma rede de postos de combustível. O crime motivou o fechamento do cerco à adulteração e à sonegação e o aumento do rigor fez com que o problema diminuísse, apesar de não ter sido eliminado.

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