País comunista também remeteu dólares para grupos de esquerda que pegaram em armas contra a ditadura
Marcelo Godoy - O Estado de S. Paulo
Em segredo, a Coreia do Norte treinou guerrilheiros
brasileiros e enviou dólares a grupos de esquerda que pegaram em armas
contra a ditadura militar nos anos 70. Instrutores do Exército coreano
que falavam espanhol davam aulas de formação política, de marcha,
emboscada, explosivos e manejo de armas leves, como fuzis e carabinas,
aos alunos brasileiros.
Reuters
Encontro pelos 94 anos de Kim Il-sung, em Pyongyang
Treinamento no exterior também atraiu Exército
O Estado entrevistou três dos integrantes de uma
turma de brasileiros que treinou táticas de guerrilha rural naquele país
- um deles pediu anonimato. Integrantes da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), eles revelaram um segredo da guerra fria, parte da
história do apoio dado pelos países comunistas à luta armada no Brasil.
De fato, Cuba e China também treinaram guerrilheiros, que depois
voltaram ao Brasil. No caso dos alunos dos coreanos, isso só não ocorreu
porque os planos fizeram água após a desagregação de sua organização.
"O curso foi muito bom. Tinha a parte militar clássica, mas sempre
voltada para o trabalho de guerrilha", afirmou o sindicalista Irany
Campos, um dos guerrilheiros do curso.
A turma de brasileiros era formada em sua maioria por militantes de
esquerda que foram banidos do Brasil. Presos pelo regime, eles haviam
sido enviados para fora do País em troca da libertação de diplomatas
estrangeiros sequestrados em 1970 pelos guerrilheiros, como os
embaixadores alemão ocidental (Ehrenfried von Holleben) e suíço
(Giovanni Bücher).
A direção da VPR acertou com a Embaixada da Coreia em Cuba o envio
dos militantes - a ALN quase fechou acordo semelhante. "Tenho
conhecimento só de uma turma que esteve lá: a nossa", disse Campos.
Os nove da VPR saíram do Chile e foram para Cuba. Ali pegaram um
avião em Havana, que fez escalas no Canadá, em Marrocos e em Moscou,
quando houve uma pausa de dois dias. Os soviéticos permitiram a estadia
dos brasileiros, que, depois, rumaram à Sibéria, onde o avião fez a
última escala antes de Pyongyang.
O acampamento dos brasileiros era próximo da capital. "A gente
permaneceu isolado. Só saía de lá com os coreanos", afirmou Jovelina
Tonello, única mulher do grupo. A alimentação e estada eram por conta
dos coreanos. Toda semana havia sessão de cinema com filmes coreanos
traduzidos pelos instrutores. "O professor de caratê era um cara que
havia matado 13 em uma emboscada", disse Jovelina. O fato ocorrera na
Guerra da Coreia (1950-53).
Parte do treinamento, que durou três meses, ocorreu quando ainda
havia gelo. As aulas de formação política eram dadas por coreanos.
"Dentro da visão que eles tinham de solidariedade internacional do
camarada Kim Il-sung. Nós estávamos ali em função da solidariedade
internacional", afirmou Campos, citando o secretário-geral do PC daquele
país. Ali o guerrilheiro aprendeu a manusear o fuzil AK-47.
"No fim, tivemos a honra de o governo mandar um representante para
almoçar com a gente", disse Jovelina. Ela ainda fez curso de auxiliar de
enfermagem, que seria útil mais tarde. Após três meses, os
guerrilheiros voltaram a Cuba pela mesma rota. "A maioria seguiu para o
Chile", disse um dos guerrilheiros, carioca que militou na VPR.
'Voltar para lutar'
O objetivo era voltar para o Brasil. "Voltar para lutar", disse
Campos. Na época, o Chile era governado pela União Popular, liderada
pelo socialista Salvador Allende. Jovelina foi uma das militantes que
foram parar em Santiago. Naquele período, em 1972, a situação da VPR
havia se deteriorado. Três grupos se digladiavam pelo controle da
organização. O líder de um deles, o sargento Onofre Pinto, era acusado
de traição por sua ligação com José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo,
que foi preso e passou a trabalhar para o delegado Sérgio Paranhos
Fleury, da polícia paulista.
"Um dia me encontrei com o Onofre e ele me deu um beijo. Eu não
entendi nada. Ele disse: ‘Eu recebi o relatório. Muito bom, muito bom’.
Aí fiquei sabendo que era o relatório sobre o curso na Coreia", disse
Jovelina. A direção da VPR recebeu o relatório dos coreanos por meio dos
cubanos. "Eles me felicitaram pelo meu comportamento durante o
treinamento."
Jovelina estava em um dos grupos contrários a Onofre e, depois,
desligou-se da organização. Passou a trabalhar como enfermeira em uma
fábrica até ser presa após o golpe militar contra Allende, em 1973. Como
não foi identificada como estrangeira, acabou liberada.
Juntou-se ao marido e a socialistas chilenos na resistência ao golpe,
mas em novembro todos procuraram o Refúgio de Padre Hurtado (Santiago),
um abrigo para os perseguidos políticos patrocinado pelo Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Ela e seus
companheiros saíram do Chile em fevereiro de 1974. Deixaram para trás a
luta armada e rumaram para o exílio na Europa e em Cuba, levando com
eles o segredo coreano.
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