quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Enfermeira mineira compartilha lembranças da Segunda Guerra Mundial

Enfermeira mineira, de 97 anos, que esteve no conflito mundial na Itália integrando a Força Expedicionária Brasileira (FEB) ganha quadro em homenagem do Exército

Gustavo Werneck -Estado de Minas
Publicação: 27/09/2012 06:00 Atualização: 27/09/2012 07:20

Ao retornar ao Brasil, Carlota Mello passou a cuidar dos pais e irmãos, preferindo permanecer solteira  (ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS)
Ao retornar ao Brasil, Carlota Mello passou a cuidar dos pais e irmãos, preferindo permanecer solteira
O colar de pérolas, de duas voltas, combina impecavelmente com a blusa de seda e a saia preta com detalhes em renda. Os cabelos brancos bem arrumados e os óculos de lentes azuis dão ainda mais elegância à figura da mulher de porte altivo, voz firme e memória prodigiosa. Se a audição ficou meio afetada pelo tempo, não há problemas: basta chegar os lábios mais pertinho do ouvido, perguntar, que a mineira Carlota Mello, de 97 anos, vai responder com histórias que se passaram há sete décadas e mesclam horror, solidariedade, medo, determinação e companheirismo. Uma das mais velhas enfermeiras brasileiras que serviram na Europa durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) – das 67 que seguiram com os pracinhas para a Itália, apenas duas mineiras estão vivas –, Carlota foi homenageada ontem, na sede da Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira (AnvFeb), no Bairro Floresta, Região Leste de Belo Horizonte, pelo comando do 12º Batalhão de Infantaria (12º BI), subordinado à 4ª Região Militar (4ª RM). Recebeu de presente um quadro com um desenho retratando os seus tempos de jovem de partida para o front.
Eram 14h30 quando Carlota chegou à sede da AnvFeb, acompanhada da sobrinha-neta Deborah Melo. “Quando a guerra terminou, em me empenhei em deixar para trás os fatos ocorridos durante aqueles 11 meses que ficamos na Itália. Agora, velha, é que os episódios estão vindo com mais força à minha cabeça”, confessa a primeiro-tenente enfermeira, que não se casou ou teve filhos. “Ao retornar ao Brasil, me tornei arrimo de família, fui cuidar dos pais e irmãos, então preferi ficar solteira”, afirma sem ressentimentos.
No ambiente da AnvFeb marcado por fotografias da época do conflito, equipamentos bélicos e a presença forte dos pracinhas que lutaram nos campos italianos, as memórias se tornam mais vivas e Carlota, natural de Salinas, no Norte de Minas, parece voltar no tempo. “Trabalhava como enfermeira em Belo Horizonte e, um dia, vi um cartaz do Exército chamando profissionais da área. Na hora, pensei: quero ser útil, deixar de lado as futilidades, então irei”, recorda-se Carlota, que se considerava uma pessoa ousada, diferente e interessada em dar um sentido à vida. Decidida, se apresentou e cruzou o Oceano Atlântico, numa viagem que trouxe experiência, conhecimento e um pouco de aventura. “A guerra tem muita angústia e isso nos transforma.”
Na tarde dessa quarta-feira, ao prestar a homenagem a Carlota, o comandante do 12º BI, coronel Alexandre Santos, destacou a participação feminina na FEB, ali representada por Carlota. Muito apropriadamente, o quadro foi descerrado pelo sargento Ágatha, do 12º BI. Ele explicou que, em 7 de setembro, a unidade promoveu um concurso de pinturas e desenhos aberto ao público, sendo uma das vencedoras Maria das Dores Alves de Melo, conhecida por Dôia e residente no Bairro Esplanada, Região Leste de BH. Dôia fez um desenho se espelhando numa foto de Carlota existente no museu da instituição. “Ao terminar o desenho, a artista plástica Cândida Álvares, que estava por perto, me disse que aquela mulher estava viva”, conta Dôia. “E foi assim que eu a conheci”, diz Maria das Dores, que descobriu o talento ao entrar para uma faculdade específica a terceira idade. A outra enfermeira mineira, pouco mais velha que Carlota, é Roselys Belém Teixeira.
Sem tempo para ter medo
Na Itália, os brasileiros integraram o Exército dos Estados Unidos e a convivência com os norte-americanos, mesmo sem dominar o idioma, foi positiva, diz Carlota, que completará 98 anos em 12 de outubro. “Em Nápoles (Itália), onde trabalhei no General Hospital (hospital geral), falava feito papagaio, repetindo as palavras em inglês, mas dava para resolver tudo. Convivia com os norte-americanos o tempo todo, então tínhamos que nos comunicar de qualquer jeito. Usei roupas de frio do Exército deles, pois as nossas não eram adequadas.” Mesmo sendo uma época de tanto sofrimento, a enfermeira confessa que teve medo, mas não aquela “paúra”, palavra usada pelos italianos. “Havia muito bombardeio, estávamos expostos dia e noite. Vivíamos num campo minado, tudo era perigoso”, lembra Carlota, que muitos vezes foi obrigada a ir para o abrigo.
Num daqueles bombardeios, quando todos saíram correndo para se proteger, ela correu para carregar um caixote contendo ampolas de penicilina, usadas nos 64 pacientes sob cuidados das brasileiras. “Consegui chegar rápido, juntei todas as minhas forças e o levei até o local seguro. Ao chegar lá, para minha surpresa, fui aplaudida e os soldados me levantaram no ar. Me senti como se fosse um jogador de futebol em fim de campeonato”, brinca. Ontem, ao receber as homenagens, Carlota lembrou algumas passagens. “Vi muitas cenas tristes, mas tenho certeza que cumpri o objetivo de fazer algo pelos semelhantes.” Mesmo tendo vivido momentos de tanta turbulência, revela, sem vaidade, que nunca pensou em escrever um livro. “Apenas dei um depoimento para uma obra sobre a guerra.”
Carlota diz que conseguiu ter o trabalho reconhecido e valorizado. Neste ano, em que se completam sete décadas que o Brasil declarou guerra aos países do Eixo (Alemanhã, Itália e Japão), diz, sem titubear, que foi a atitude mais acertada e que, se fosse preciso, voltaria aos campos de batalha. E depois de tudo isso, o que é a felicidade? “Sei lá… depende muito. Mas depois de tudo que li escrito por cientistas, profetas e outros, acho que ser feliz é viver com tranquilidade e bem com a consciência, com o ser humano, a natureza e a ciência, tudo isso que quer dizer Deus”.
Museu para contar a história
Dia primeiro deste mês, o mundo lembrou os 73 anos do início da Segunda Guerra Mundial, que envolveu a maioria das nações e incluiu todas as grandes potências da época, organizadas em duas alianças opostas: os Aliados (Estados Unidos, França, Inglaterra e outros) e o Eixo (Alemanha, Itália e Japão). O conflito mais letal da história da humanidade mobilizou mais de 100 milhões de militares e deixou cerca de 70 milhões de mortos. Em 8 de agosto, outra data levou à reflexão: há 70 anos, o presidente Getúlio Vargas (1882-1954) rompia relações diplomáticas com o Eixo, depois que navios nacionais, não de combate, mas comerciais, foram torpeados e afundados por submarinos alemães.
O Brasil, via FEB, mandou ao teatro de operações da Itália 25.334 combatentes, dos quais 2.947 mineiros. Morreram 467, sendo 82 das Gerais. Houve vitórias, como a conquista da cidade de Montese e do Monte Castelo, entre várias outras, sendo que, em Collecchio e Fornovo, os pracinhas cercaram e aprisionaram a 148ª Divisão de Infantaria Alemã, com quase 15 mil homens.
Quem vai ao Museu da FEB, na Avenida Francisco Sales, 199, no Bairro Floresta, conhece mais sobre a Segunda Guerra Mundial. O espaço é também ponto de encontro dos pracinhas, que contam a sua trajetória e falam dos combates. O museu abre de segunda a sexta, das 13h às 17h, e sábados e domingos, das 10h às 13h. A entrada é franca e contatos pelo telefone: (031) 3224-9891. No primeiro domingo de cada mês, há, em frente à instituição, o encontro (10h) de colecionadores de veículos militares antigos.

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