sexta-feira, 2 de novembro de 2012

BH está com clima de deserto do Saara

Além de aquecimento global, especialistas apontam como causas asfalto, concreto, falta de áreas verdes e gases no ar. Temperatura na capital mineira supera a de cidades da África e do Norte do país

Pedro Ferreira -Estado de Minas
Publicação: 02/11/2012 06:00 Atualização: 02/11/2012 07:19

Para amenizar o calor intenso, adultos e crianças buscaram ontem refúgio nas piscinas, como a do Minas Tênis Clube, lotada durante todo o dia (Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Para amenizar o calor intenso, adultos e crianças buscaram ontem refúgio nas piscinas, como a do Minas Tênis Clube, lotada durante todo o dia
Quando jovem, o médico José do Carmo Fonseca, de 72 anos, comprou um capote de couro em viagem ao Uruguai para enfrentar o frio em Belo Horizonte, até mesmo no verão. “O clima era ameno e ideal para tratamento de tuberculose. A cidade importava doentes de todo o Brasil. Hoje, a gente nem consegue dormir direito de tanto calor. E, pelas estatísticas, a tendência é só piorar”, reclama o médico. Na quarta-feira, a capital registrou a temperatura mais alta desde 1910, quando começou a medição. Os termômetros marcaram 37,1 graus e o calor superou o recorde de 1987, de 36,9 graus. O dia foi mais quente do que em Macapá (AP), cortada pela linha do Equador, com 34,9 graus, e ultrapassou até mesmo a temperatura de Dakar (Senegal) e do Cairo (Egito), com temperaturas de deserto.
A onda de calor em BH começou no sábado, com temperatura acima de 33 graus, e ontem a máxima foi de 34 no período da tarde. Segundo o metereologista Adelmo Correia, da PUC Minas, não há como separar os impactos local e global para definir as causas do aumento da temperatura na capital, mas estudos comprovam que a mudança foi muito brusca em torno da Grande BH. “Se você comparar como era Belo Horizonte há 30 ou 40 anos e o que hoje, sem dúvida vai ter um impacto nessa série histórica”, disse Adelmo.
Há 40 anos, segundo ele, o município tinha muito solo com vegetação. “Hoje, a capital toda é puro concreto. Não há mais espaços com árvores. O cimento absorve mais energia e aumenta mais a temperatura”, disse Adelmo. Ele explica que pesquisadores apontam o dióxido de carbono lançado no ar pelos automóveis como o vilão do aumento da temperatura. Explica que áreas com mais edifícios, como nos bairros Belvedere, Buritis e Centro, absorvem mais energia do sol e são mais quentes do que os bairros com mais casas
Evolução
Geólogo e especialista em meio ambiente, João Alberto Pratini de Moraes pesquisou a evolução da temperatura média em Belo Horizonte no século passado. “Os estudos indicaram um aumento da temperatura de Minas e da capital na ordem de 1,6 graus a cada 100 anos”, disse. Segundo ele, são várias causas que podem explicar esse aumento. Uma delas é o aquecimento global, resultado da elevação da concentração dos chamados gases do efeito estufa na atmosfera, o que provoca o desequilíbrio ambiental.
“O que ocorre no clima de BH está plenamente de acordo com o que acontece no planeta, mas outro efeito torna a temperatura da capital ainda mais elevada: é a chamada ilha de calor urbano. Qualquer cidade grande sem os devidos critérios de crescimento sustentado e ecológico tem aumento da temperatura. Asfalto, concreto, falta de áreas verdes e emissão de gases pelos veículos contribuem para a elevação da temperatura”, disse João Alberto, lembrando que o entorno de BH é menos quente, mas áreas de mineração provocam o aquecimento e geram partículas em suspensão.
O especialista considera que a capital não tem mais inverno, mas ondas de frio. “Antigamente, tínhamos uma diferenciação das estações inverno e verão pela temperatura. E isso está acabando. A tendência, com mais algumas décadas, é de que o inverno acabe completamente. Se não houver mudanças nas chuvas, teremos um inverno como estação seca e o verão como estação chuvosa, mas as temperaturas não serão diferentes”, disse.
Para enfrentar a onda de calor, a população da capital buscou refúgio nas piscinas de clubes e até nas fontes das praças. A estudante Júlia Manso se divertiu durante a tarde numa das fontes da Praça da Savassi e crianças se refrescaram na Praça da Estação. Clubes, como o Minas, também registraram aumento de frequência devido ao intenso calor.
Frio fica na lembrança
O gerente comercial César Augusto de Campos, de 50 anos, mora na capital desde que nasceu e sente na pele as mudanças. “Percebo que nos últimos 15 anos a temperatura tem modificado bastante. Hoje, temos o mesmo calor do Norte de Minas. Antes, as estações do ano eram bem definidas. Estamos na primavera agora e não choveu tanto como antes”, observa.
O médico José do Carmo conta que chegou a BH em 1950, com 10 anos, e guarda boas lembranças do frio. “Eu me agasalhava todo para ver as moças no footing da Avenida Afonso Pena, andando da Igreja São José à Praça Sete. Ficava em frente ao Café Nice e do Banco da Lavoura, de paletó e capote. As mulheres usavam saias longas e também se protegiam do frio. Era uma cidade charmosa, com várias influências francesas. Tinha até neblina depois das 22h. Depois, cortaram as árvores que cobriam a avenida, os carros aumentaram e hoje o calor é insuportável”, lamenta.
A terapeuta Kalidja Ramn, de 72, também nasceu e vive na capital. “A temperatura aumenta a cada ano. Curava-se tuberculose só de respirar o clima. Antes, sentia frio no Bairro Mangabeiras, onde moro, mas hoje não preciso nem de cobertor para dormir”, afirma. Kalidja conta que antigamente não saía de casa sem o casaco de pele, luvas e um chapéu. “A gente conversava e até saía uma fumacinha da boca e do nariz da gente”, disse.
O engenheiro Eduardo Bezerra, de 61, nasceu em Belo Horizonte e viveu uma temporada em Governador Valadares, no Vale do Rio Doce, conhecida pela alta temperatura. “Hoje, não vejo mais diferença entre as duas cidades”, disse Eduardo, lembrando que a temporada das chuvas começava mais cedo.

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