- A bordo de um Lamborghini caro e raro, o rei movimenta a Urca em seus passeios diários; tem até quem registre o ronco do motor
- ‘Já vi fãs tentando parar o carro dele, mulher querendo subir no capô’, diz Eraldo Silva, dono de um restaurante do bairro
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RIO - Quinze para as cinco da tarde de uma terça-feira, o Lamborghini
branco vem deslizando rapidamente pela curva fechada que leva à Rua
Marechal Cantuária, na Urca. O cara que pilota o arrojado carango veste
azul claro, traz uma expressão confiante no rosto e tem os cabelos
esvoaçados pelo vento. O ronco barulhento do exclusivíssimo conversível
italiano ecoa pelo bairro. Ao longo da rua, alguns comerciantes e
transeuntes fazem saudações. O motorista acena de volta, com gestos
rápidos. Aquela é a hora do Rei, quando Roberto Carlos passa de repente
com seu novo carrão.
Não
são nem dois quilômetros, nem cinco minutos diários. Em seu trajeto,
Roberto sai de sua cobertura na Avenida Portugal, sempre entre 16h30m e
17h, e dirige até uma portentosa mansão no alto da ladeira da Rua São
Sebastião, onde fica seu estúdio. Regressa para casa por volta das 21h.
Embora rápida, sua passagem é um ritual cotidiano, uma atração no pacato
bairro, onde muitos sabem de cor os carros dele e quase todos têm
histórias — verídicas ou míticas — para contar sobre o Rei.
Natural
de Campina Grande, Eraldo Silva está à frente do bar e restaurante Urca
Grill há oito anos. Atrás do balcão, contemplou, por muitas vezes,
Roberto passando a bordo da famosa Mercedes Benz SLC, de 1978. Viu,
também, o calhambeque azul, assim como o Cadillac vermelho. De uns três
anos para cá, acompanhou seu retorno aos luxuosos esportivos, com os
dois Audis R8 conversíveis e o novíssimo Lamborghini Gallardo LP 570-4
Spyder Permormante, adquirido há poucos meses e avaliado em R$ 1,5
milhão (mesma faixa de preço de uma Ferrari). Especula-se no mercado
automobilístico que o carro, o mesmo em que o Rei apareceu na abertura
de seu especial de fim de ano da TV Globo, seja o único deste modelo no
país, importado sob encomenda pelo cantor.
— O pessoal daqui está
acostumado. Mas já vi fã tentando parar o carro dele, mulher querendo
subir no capô. O segurança vem atrás, em outro carro. Quando ninguém
acena, o Rei volta — conta Eraldo. — Quero trazer minha mãe da Paraíba e
botar ela sentada aqui de frente, para ver ele passar.
São poucas
as pessoas acostumadas a ver um Roberto Carlos no dia a dia. O
eletricista Orlando Prado costuma ver dois: além de cruzar com o
verdadeiro pelas ruas da Urca, onde trabalha, ele ainda é vizinho, na
Lapa, de Carlos Evanney, o mais famoso sósia do Rei.
— Eu saio de
casa e vejo a cópia do homem, chego no trabalho, e o original passa de
carro. Esse mundo às vezes é engraçado, não é? — indaga o eletricista,
que está preparando “um trabalho de crooner com canções de Roberto”.
O
primeiro encontro de Orlando com o Rei aconteceu nos anos 60, quando o
primeiro trabalhava na antiga “Revista do Rádio”. Depois, o eletricista
esbarraria com o cantor por diversas vezes na TV Tupi — que ficava no
prédio do antigo Cassino da Urca — e em boates onde trabalhou como
iluminador. Enquanto faz reparos na iluminação de uma banca de jornal,
ele conta que, recentemente, atravessava distraído a São Sebastião
quando o súbito roncar de um Audi R8 vermelho o fez saltar de susto.
— Pô, Roberto. Assim você me mata — ele garante ter dito.
—
Olha pra frente, meu camarada! — ele jura ter respondido um
bem-humorado Roberto, dando sua tradicional gargalhada, acenando seu
característico byyye e pisando forte no acelerador.
Morador
da São Sebastião, o engenheiro Pedro Roitman teve alguns encontros com o
cantor na estreitíssima rua. Dentro de seu Focus, ele já se viu frente a
frente com alguns dos possantes do Rei. Apenas um dos dois podia
passar.
— É um pouco inusitado estar nessa situação com o Roberto
Carlos. Ele é paciente, mas prefiro manobrar para deixá-lo passar. Da
última vez, me enrolei um pouco com outro carro que vinha atrás, ele
encostou do lado e disse: “Agora resolve aí, bicho, hehehehe” — imita Pedro.
Ao
longo das últimas décadas, o mais adorado e comercialmente bem-sucedido
cantor do país foi se tornando um Rei cada vez mais discreto e distante
de seus súditos. Pouco a pouco, Roberto Carlos recolheu-se dentro de
seus palácios, rodeado por uma corte de funcionários sempre a postos.
Desde então, sua única aparição pública, em grande parte dos dias,
resume-se ao pequeno trajeto na Urca e às missas dominicais da Paróquia
Nossa Senhora do Brasil, a poucos metros de sua casa.
O cantor
mudou-se para o bairro em 1980, após se separar da primeira mulher,
Nice. Comprou a cobertura do luxuoso prédio Golden Bay para si, e o
apartamento de baixo para a mãe, Lady Laura, que morreu em 2010. Ali,
viveu com Myrian Rios e depois com Maria Rita, falecida em 1999. A
relação de Roberto com o bairro, que acaba de completar 90 anos, é um
capítulo à parte. Para alguns estabelecimentos, ele envia CDs; para
outros, ingressos de shows. Sabe-se que seu staff de empregados usa os serviços de oficinas, restaurantes, salões de beleza e mercados da região.
Em um dos salões, quando perguntada sobre Roberto, uma manicure morena desconfia:
—
Ele sempre fala conosco, mas não posso contar mais nada. Foram eles
quem te mandaram aqui, não é? — pergunta, em tom conspiratório.
Em
2009, uma repórter de Cultura de um jornal de São Paulo esperava,
relativamente discreta, a passagem de Roberto em frente ao Golden Bay
quando recebeu um telefonema de Ivone Kassu, assessora do cantor
falecida no ano passado, informando que estava ciente de sua presença.
Como ela sabia?
— Meu amor, a Urca cuida de Roberto Carlos — explicou Ivone.
Para o historiador e jornalista Paulo Cesar de Araújo, autor de “Roberto Carlos em detalhes”, biografia non grata
pelo Rei e retirada das lojas após um acordo judicial entre ele e a
editora Planeta, a Urca, com seu ar de cidade do interior, permite ao
cantor uma certa liberdade que outros bairros da cidade não ofereceriam:
—
É como se ele mantivesse os pés na suas raízes, conservando de alguma
forma o cenário da antiga Cachoeiro de Itapemirim. Além disso, por ser
um bairro pequeno e fechado, é mais fácil de controlar. É como se a Urca
fosse um universo particular onde ele pode circular relativamente
livre. Se fosse Ipanema, Barra ou Copacabana isso seria impossível.
Para
alguns comerciantes da Rua Marechal Cantuária, Roberto é um borrão
vermelho, azul ou branco, dependendo do carro que usar, passando em
frente à porta. Pela pequena entrada da locadora Vídeo Tudo, a mineira
Alenir Duarte nem sempre dá a sorte de olhar a rua no exato momento em
que Roberto está passando.
— Algumas vezes, aconteceu de o
trânsito engarrafar, e ele parar justamente aqui na frente. Em Belo
Horizonte, não perdia um baile, na época da jovem guarda. Quando eu
poderia imaginar que o Roberto Carlos passaria na minha porta?
Até
poucas semanas atrás, a Vídeo Tudo ainda exibia o charmoso letreiro
“Abasteça aqui seu Vídeo K7”, que teve que ser retirado para se adequar
às novas normas da prefeitura. A locadora existe há 26 anos e é um
retrato de um dos lados do bairro, com um ar simples e antigo, como um
lugar que parou no tempo. Myrian Rios e Maria Rita eram sócias e
alugavam filmes lá. Luiz Abi Saber, marido de Alenir, conta que, certa
feita, Roberto teria encomendado e comprado alguns filmes do humorista
Mazzaropi, de quem é fã, ainda em VHS. Ele se lembra de quando foi
chamado para instalar uma aparelhagem nova de vídeo pré-home theater na
casa do Rei:
— Era tudo branco, paredes e móveis. Sóbrio, de uma simplicidade impressionante.
Roberto
tem outra admiradora mineira na rua. Seu nome é Suely Cardoso,
cabeleireira do salão Só Beleza e moradora do bairro há 40 anos, desde
que chegou da pequena cidade de Serra dos Aimorés, com apenas 8,5 mil
habitantes. O salão fica de frente para a entrada dos fundos da
paróquia, usada muitas vezes pelo Rei para fugir do assédio de fãs e
repórteres que o esperam na outra porta da igreja. Foi ali que Suely
arriscou e conseguiu a única foto tirada ao lado de seu ídolo. Sua
música preferida é “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”.
— Ouvia essa música quando estava começando a namorar o meu marido. A gente cantava ela, foi muito marcante — lembra Suely.
Recentemente,
ela estava cortando o cabelo na casa de uma cliente que mora na Rua São
Sebastião, ao lado do estúdio do cantor. Pela janela indiscreta, Suely
testemunhou Roberto fazendo algo que pouca gente viu até hoje:
—
Ele estava com um cortador de grama, ensinando para um rapaz como
deveria cortar. Achei engraçado ver o Rei assim, parecia uma pessoa
comum, cuidando do jardim — descreve.
Em outro balcão ali perto,
Vilma Lira ainda recorda o dia em que Roberto Carlos sentou na primeira
classe de um voo da Varig. Por 20 anos, ela foi comissária na empresa
gaúcha. Hoje, tem uma distribuidora de gelo e água na Urca. Vilma lembra
a simpatia de Roberto, com quem conversou brevemente e aproveitou para
fazer uma sugestão:
— Pedi para que ele fizesse uma música sobre
aeromoças. Ele tem canções sobre várias profissões e vários tipos de
mulheres — conta Vilma, que é fã de “Como é grande o meu amor por você”.
— Talvez ele não tenha encontrado uma musa ainda...
O garçom
Audálio Aragão também não esquece o encontro que teve com Roberto. Foi
em 1986, quando Audálio, hoje no Belmonte, era garçom no restaurante do
chef Claude Troisgros, no Jardim Botânico. Ele recita o menu degustação
que serviu naquele dia para o Rei, saboreando cada iguaria: musse de
agrião, folhado de dourado, sorvete de caju. Lembra também de um Roberto
simpático, mas de pouca conversa, e se arrepende de não ter quebrado o
protocolo para pedir um autógrafo. Lamenta que a ex-mulher tenha ficado
com os LPs do Rei e cita a música “Do fundo do meu coração”: “Se você me
perguntar se ainda é seu/Todo meu amor, eu sei que eu/ Certamente vou
dizer que sim/Mas já depois de tanta solidão/ Do fundo do meu coração/
Não volte nunca mais pra mim.”
— É que me lembra uma garota — explica, e logo desconversa.
Apesar
de ter sido Reginaldo Rossi quem homenageou a classe, nove entre dez
garçons parecem ser fãs de Roberto. No Belmonte, ponto de observação
privilegiado da rota do cantor, não é diferente. Vindo de Guaraciaba do
Norte, Ceará, o maître do bar tem nome de parceiro do Rei — Erasmo — e
não apaga da memória a canção “Guerra dos meninos”, que o pai colocava
para ele ouvir na infância. Conterrâneo de Erasmo Franklin, o garçom
Gilmar Chaves foi o único ali que conseguiu fazer um vídeo de Roberto no
Lamborghini.
— Escuta só como faz barulho... A gente já sabe que
ele vem vindo quando ainda está lá longe — diz, mostrando a imagem no
celular.
Há oito anos no bairro, o farmacêutico Juan Müller
garante que, em dezembro, o cantor costumava parar seu Mercedes na porta
de um extinto pé-sujo e anunciar “que aquela noite era por conta dele”.
Ao que todos os pinguços o saudavam euforicamente. Juan acha que o Rei é
um vizinho de bom senso:
— Ele tem a exata noção do impacto que poderia causar na vizinhança e prefere ser discreto.
A
paixão de Roberto por carros vem da infância — mesmo assim, ele não
quis falar sobre o assunto para esta reportagem. Paulo Cesar conta que,
ainda criança, em Cachoeiro, o cantor costumava correr atrás dos
automóveis e, curioso, metia-se debaixo dos que estavam estacionados.
Batia ponto na oficina da cidade e queria ser mecânico de caminhão, uma
paixão pouco acessível, na época.
O biógrafo do Rei contextualiza a história:
—
No Natal de 1947, ele tinha seis anos e pediu um Jeep de pedal que viu
numa loja, mas o pai só teve como dar uma miniatura de madeira. O
Roberto já declarou que esse gosto por colecionar carros é uma forma de
compensar tudo o que ele não pôde ter na infância.
Roberto só
conseguiu comprar o tão sonhado carango após emplacar o primeiro
sucesso, “Splish splash”, em 1963. Era um fusquinha 1960 bege, usado.
Ainda que modesto, foi um passo importante para o rapaz que ainda
trabalhava como datilógrafo numa repartição no Centro do Rio.
Em seguida, ele emplacou seu primeiro hit
automobilístico, “Parei na contramão”, parceria com Erasmo Carlos.
Juntos, vieram o sucesso nacional e a primeira “máquina quente”: um
Chevrolet Bel Air, com o qual sofreu um grave acidente ao volante,
resultando na morte do empresário Roberto de Oliveira, que o
acompanhava.
O estrelato trouxe os Mercedes, o Jaguar e até uma
limusine, formando uma frota particular cheia de grifes. Roberto cantou a
velocidade em sucessos como “O calhambeque”, “As curvas da estrada de
Santos” e “120... 150... 200km por hora”, e pilotou carrões em filmes
como “Roberto Carlos em ritmo de aventura” e “Roberto Carlos a 300km por
hora”, no qual interpretava um mecânico de Fórmula 1 que sonhava ser
uma estrela das pistas. Uma curiosidade revelada no livro de Paulo
Cesar: ainda nos anos 60, uma menina de 11 anos enviou uma carta ao
então prefeito de São Paulo, Faria Lima, pedindo a prisão de Roberto,
pois acreditava que só assim ele não terminaria como James Dean, morto,
ainda jovem, num acidente.
— O universo do rock, desde o início,
falava de carros, garotas e velocidade. Está em Chuck Berry, em Elvis,
nos Beatles. Além disso, não podemos nos esquecer que Roberto era
adolescente na década de 50, época da consolidação do automóvel como
sonho de consumo urbano no Brasil — explica Paulo Cesar.
Estamos
numa quinta-feira, e Roberto passa novamente a bordo de seu Lamborghini,
agora fazendo a curva que leva da Marechal Cantuária à subida da São
Sebastião. Vem no mesmo horário, só que mais rápido, como se estivesse
com pressa. A rua está livre.
Alguém grita:
— Meu Rei!
O
cantor, que no passado parou na contramão e homenageou as curvas da
estrada de Santos, acena rapidamente e... zuuum. Quem viu, viu; quem não
viu, quem sabe amanhã?
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/roberto-carlos-esse-carro-sou-eu-7199549#ixzz2HCuZsGkx
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