- Sem herdeiros ou testamento, francesa Alice Devaux deixou 16 imóveis
RIO - As paredes desbotadas, o forte cheiro de mofo e os vidros
quebrados da cobertura do prédio de número 454 da Avenida Beira Mar, no
Centro, em nada lembram o burburinho que era a casa de Alice Devaux nos
anos de 1950. Influente entre políticos e empresários da época em que a
cidade ainda era capital federal, a francesa era uma mulher requisitada.
Após o expediente, seu apartamento, com uma espetacular vista para a
Baía de Guanabara, era o lugar ideal para afrouxar o nó da gravata,
bebericar uma champanhe e fazer novas amizades.
A
movimentação na cobertura não era apenas pela qualidade da bebida ou
pelo bom papo da anfitriã. Alice, na verdade, era uma cafetina de luxo. A
qualidade de seus serviços lhe rendeu um patrimônio de 16 imóveis,
avaliados em mais de R$ 10 milhões, que serão leiloados pela prefeitura
dentro de até dois meses. Falecida em 1989, aos 86 anos, a francesa não
deixou herdeiros nem testamento. Por quase 20 anos, seu espólio foi
administrado pela Uerj. Em 2009, porém, após longa batalha judicial, a
prefeitura se tornou dona dos bens. Uma lei federal de 1990 determina
que, na falta de herdeiros ou testamento, o patrimônio fique para o
município. Antes disso, os bens iam para os estados e, no caso do Rio, a
Uerj os recebia.
Além de imóveis no Centro, Alice era dona de uma chácara na Gávea, com quase quatro mil m², avaliada em R$ 5 milhões.
A
história de Alice Devaux no Brasil começa em 18 de abril de 1925,
quando desembarcou pela primeira vez no porto do Rio, vinda de Paris.
Então com 21 anos, a jovem retornou por três vezes ao seu país de origem
antes de se estabelecer definitivamente no Rio, em dezembro de 1931.
Loira,
alta, muito magra e sempre maquiada, jamais perdeu o característico
sotaque francês. Conhecidos descrevem a francesa como uma pessoa
tranquila e reservada, que não falava sobre suas atividades
profissionais.
Todos no prédio sabiam do seu ofício. Muita gente
importante já andou por estes elevadores — relata o aposentado Roberto
Lanaro, de 81 anos, que mora até hoje no apartamento abaixo da
cobertura.
Em seu processo de naturalização, finalizado em 1951 e
ao qual O GLOBO teve acesso, ela declarou viver de rendimentos, que lhe
garantiam cerca de 25 mil cruzeiros por mês. Corrigido pelo Índice Geral
de Preços (IGP), do Banco Central, o valor equivale a R$ 21.700
atualmente.
Além dos imóveis, a cafetina possuía 1.036 ações da
Companhia de Luz Steárica, cada uma no valor de 200 cruzeiros, e cerca
de 1 milhão de cruzeiros no extinto Banco Boavista. Em valores atuais,
as economias da francesa equivaliam a pouco mais de R$ 1 milhão. Antes
disso, na década de 1930, a francesa já havia sido sócia de uma empresa
chamada Controle Industrial e Financeiro SA, ao lado dos irmãos Alfredo e
Raul Monteiro Guimarães.
Mas o que lhe garantia o alto padrão de
vida era o aluguel de rendes-vouz’ — apartamentos usados para encontros
pessoais — que lhe garantia o alto padrão de vida que levava. Para quem
buscava discrição, Alice era um porto seguro.
— Naquela época,
havia registro de todas as pessoas que se hospedavam em hotéis. Os
imóveis dela eram a garantia de que esses encontros permanecessem
secretos. Ela tinha camareiras que deixavam os apartamentos sempre
prontos para quando os clientes quisessem utilizá-los— diz um antigo
inquilino de um imóvel comercial da francesa.
Se atualmente há
poucas testemunhas que conviveram com Alice , há muito gente que jura
conhecer a Alice morta. Os porteiros do prédio de número 06 da Avenida
Almirante Barroso, no Centro, onde ela também possuía imóveis, garantem
ainda vê-la vagando pelos corredores durante a madrugada. Vestindo
muitas joias, ela está sempre segurando uma taça de champanhe. Corre
ainda a lenda de que teria sido a francesa a responsável pelo prédio não
vir abaixo quando do desabamento do vizinho prédio Liberdade, em
janeiro do ano passado.
Entre as histórias, no entanto, a certeza é
que tratava-se de uma pessoa solitária. Devaux nunca casou nem teve
filhos. Em sua ficha de naturalização, declarou como motivo de seu
pedido o fato de “gostar do Brasil e não ter mais ninguém na França”.
Desabitada
há quase 20 anos, a cobertura da Avenida Beiramar ainda não teve seu
preço mínimo definido. De acordo com um funcionário da prefeitura, o
valor não deve ultrapassar R$ 1 milhão, já que o imóvel, com
infiltrações, vazamentos e problemas elétricos, necessita de uma ampla
reforma antes de voltar a ter moradores.
Segundo o superintendente
de patrimônio imobiliário da prefeitura, Fabrício Tanure, cerca de 35
casos de heranças jacentes chegam ao seu conhecimento todos os anos.
Após o registro do óbito e a constatação de que há uma herança sem
beneficiários, é iniciada uma investigação.
— Os imóveis não podem
ser vendidos nos cinco primeiros anos após a morte do proprietário.
Neste meio tempo, há possibilidade de surgir um herdeiro, um parente de
até quarto grau. Os bens podem ser alugados, para pagar as despesas do
espólio — afirma Tanure. — Todos os rendimentos ficam em uma conta
judicial e não podem ser mexidos. O mesmo vale para a venda antecipada
de alguns bens.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/bens-de-cafetina-dos-anos-1950-serao-leiloados-pela-prefeitura-8564427#ixzz2VODUWAQi
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