sábado, 25 de julho de 2015

Cerco aos tribunais

Contrariando um princípio fundamental da democracia, a autonomia dos Poderes, a presidente Dilma pressiona sem cerimônias ministros do STF, TSE e TCU a fim de evitar a aprovação de processos que podem levar ao seu afastamento da Presidência

Josie Jeronimo (josie@istoe.com.br)
Os poderes Judiciário e Legislativo, no exercício de suas responsabilidades, devem ter liberdade de ação para garantir que um governante não confunda sua vontade com a do povo. Este raciocínio que ecoa até hoje em países de democracias consolidadas foi elaborado pelo iluminista do século XVII Barão de Montesquieu ao estabelecer os pilares de um governo não autoritário. Para o filósofo e escritor francês, o pressuposto para o Estado democrático seria a autonomia dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Assim sendo, o Executivo jamais e em tempo algum poderia interferir nas atribuições dos poderes Legislativo e Judiciário de fiscalizá-lo e, se for o caso, puní-lo. Enfraquecida politicamente, registrando uma rejeição recorde e às voltas com processos que podem levar ao seu afastamento, a presidente Dilma Rousseff tenta salvar seu mandato contrariando esse princípio fundamental da democracia consagrado no segundo artigo da Constituição brasileira. Magistrados do Supremo Tribunal Federal, Tribunal Superior Eleitoral e ministros do Tribunal de Contas da União - órgão vinculado ao Legislativo - sofrem toda a sorte de pressões para evitarem possíveis condenações a Dilma. O disparate deste recurso anti-republicano tomou formas na noite do último dia 7 de julho. A cidade portuguesa do Porto tornou-se palco para uma conversa entre Dilma, o presidente do STF, Ricardo Lewandowski. e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. De tão sigiloso, o encontro não constou sequer na agenda oficial das autoridades.
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Enquanto pôde, o Planalto manteve o encontro em segredo. Após a reunião vir à tona, aliados da presidente dedicaram-se a disseminar a tese de que o jantar casual foi destinado a discutir o projeto aprovado pelo Congresso que concedeu 78% de reajuste a servidores do Judiciário. “O ministro Lewandowski levou um computador e apresentou à presidente todos os dados do aumento”, argumentou Cardozo. A justificativa entrou para o rol das desculpas mais esfarrapadas do governo. Ora, se era para tratar de um assunto institucional e de interesse de dois poderes, Dilma ou Lewandowski poderiam simplesmente ter atravessado a Esplanada e se encontrado numa audiência oficial, comunicada ao distinto público em suas agendas, como manda o figurino. Seus gabinetes guardam uma distância de apenas 300 metros. Mas eles preferiram agir às escondidas e tinham razões para isso.
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Auxiliares do ministro da Justiça informaram à ISTOÉ que o leque de assuntos foi mais amplo do que aquele divulgado pelo governo, depois que a reunião foi descoberta. Incluiu a agenda do Supremo em relação à Operação Lava Jato e falou-se até sobre um habeas corpus concedido ao ex-tesoureiro do PT, hoje preso, João Vaccari Neto. O assunto foi introduzido quando Lewandowski lembrou que assumiu no início do mês o plantão do STF, durante as férias coletivas dos demais ministros. Logo no início dos trabalhos, no dia 3, ele concedeu liminar a um pedido de habeas corpus apresentado por Vaccari Neto para evitar uma acareação com Renato Duque, ex-diretor da Petrobras, que estava marcada para o dia 8 ou 9 de julho na CPI do Petrolão. Dono de um histórico de boas relações com o governo, construído principalmente durante o julgamento do mensalão, quando se tornou ao principal contraponto a Joaquim Barbosa, o presidente do Supremo ressaltou que continuará de prontidão até o final do recesso do Judiciário. Durante o período, poderá tratar de temas relacionados aos empreiteiros presos pelo Petrolão. Embora em nenhum momento eles tenham falado diretamente sobre um possível processo de interrupção do mandato presidencial, discutiu-se no jantar a agenda de trabalho do STF para o segundo semestre de 2015. A presidente queria saber como o tribunal vai se organizar para definir a pauta de plenário, atribuição de Lewandowski.
Dilma aposta todas as suas fichas no STF por duas razões fundamentais: primeiro porque ela está convencida de que este é o único foro em que a presidente detém maioria hoje. Segundo porque a corte será o desaguadouro dos principais processos contra ela, incluindo o das pedaladas fiscais em tramitação no TCU.
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O TSE também sente a pressão exercida por um governo em apuros. Enquanto a ação que pede a impugnação da chapa de Dilma nas eleições de 2014 parecia ser apenas mais uma ofensiva da oposição, o trabalho do corregedor-geral, ministro José Otávio de Noronha, transcorreu no ritmo da burocracia processual. A relação direta entre as investigações da Lava Jato com o questionamento de abuso de poder econômico na eleição, porém, deu peso político ao trabalho do colegiado. Empreiteiros delataram que o caixa eleitoral do PT era abastecido com propina do esquema da Petrobras e, a partir daí, o governo passou a sondar o posicionamento dos ministros. Mas a tentativa de aproximação não foi bem assimilada pelos integrantes do tribunal. Formou-se, então, ao contrário do que imaginava o governo, uma frente de críticas à ação do Planalto, puxada pelo ministro Gilmar Mendes, vice-presidente do TSE. Mesmo assim, Dilma escalou ministros para fazer marcação sob pressão no corregedor Otávio Noronha. O relator da ação contra Dilma no TSE participou do mesmo seminário com Lewandowski em Portugal, nos dias 6 e 7 de julho. A boa notícia, ao menos para quem defende a harmonia entre os Poderes, é que Noronha não aderiu ao jantar sigiloso da cidade do Porto. Em outra ponta, a base aliada de Dilma ajudou a aprovar no Congresso o texto básico da reforma política que dificulta a apuração de irregularidades pelo TSE. Por exemplo, o prazo para que o MP represente contra os suspeitos foi encurtado de junho do ano seguinte à eleição para dezembro, o que inviabiliza investigações mais complexas.
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CONFABULAÇÕES EM MEIO À CRISE
Ao lado do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, acusado de
receber propina, Renan Calheiros, presidente do Congresso, promete reação
No TCU, o governo encontrou mais facilidade para trafegar. Grande parte da corte é egressa do Congresso ou apadrinhada por políticos. Ciente disso, o governo trabalha nos bastidores para que suas contas sejam aprovadas com ressalvas. Os peemedebistas Renan Calheiros (AL), presidente do Senado, e o ex-presidente José Sarney têm ascendência sobre pelo menos três dos nove ministros. As cadeiras de Vital do Rego e Bruno Dantas foram indicação de Renan. Longe da política, Vital está preocupado com o futuro de sua família na Paraíba. Em 2016, o ministro do TCU espera emplacar algum familiar na prefeitura de Campina Grande e precisa de apoio. O governo acena com essa possibilidade. Já Sarney, sem mandato e com poderes reduzidos no governo, está se fazendo de interlocutor de Raimundo Carreiro para tentar manter sob seu domínio os negócios portuários do Maranhão. Mas o ministro do TCU que sofre a maior marcação cerrada do governo é José Múcio Monteiro. Ele foi o responsável pelo processo das “pedaladas fiscais” que identificou a manobra que consistia em contrair empréstimos com bancos públicos para adiar a saída de recursos do Tesouro e inflar resultados econômicos. O trabalho de Múcio é o cerne do relatório do ministro Augusto Nardes, que identificou nas pedaladas o principal motivo para reprovar as contas de Dilma. Múcio é amigo do ex-presidente Lula e primo do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Armando Monteiro. Se ele decidir pela aprovação das contas com ressalva, Múcio atenua o peso do relatório de Nardes e pode mudar outros votos do colegiado.
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Outra maneira de pressionar o TCU foi a retomada no Congresso de projetos para fiscalizar e tirar poderes do tribunal. Entre eles, o que encurta a permanência de ministros na corte e o que cria uma espécie de autoridade fiscal, com atribuições parecidas com a do próprio órgão.
O cerco aos poderes não impediu que a Lava Jato alvejasse integrantes de partidos aliados ao governo no Congresso. Os principais atingidos foram o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e o senador Fernando Collor (PTB-AL) – leia mais à pág 46. Em reação, o presidente do Senado, Renan Calheiros, aproveitou o clima de pressões e contrapressões para solicitar agenda com Lewandowski a fim de reclamar da maneira como a Polícia Federal entrou na residência de Collor e outros senadores e confiscou seus bens. Na Casa da Dinda, mesmo com o processo ainda em curso, foram apreendidos uma Ferrari vermelha, um Porsche preto e uma Lamborghini prata. Nos próximos dias, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, receberá a visita de Dilma, para quem tudo parece ser uma grande negociata. Temendo novas retaliações do Congresso, a presidente quer se inteirar sobre o andamento dos processos contra os políticos. Como já o fez com o TCU, TSE e STF, Dilma transita sem cerimônias pelo MP Federal. Como se percebe, insiste em não seguir os ensinamentos de Montesquieu, tão caros para os regimes que se pretendem democráticos.
Fotos: Pedro Ladeira/ Folhapress; Dida Sampaio/ Estadão Conteúdo 

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