quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Qual o valor econômico do Rio Doce

Paulo Haddad
Paulo Haddad
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03/12/2015

Se observarmos cuidadosamente os municípios e as regiões do Brasil do ponto de vista dos indicadores econômicos e sociais, é possível identificar um grande número de áreas economicamente deprimidas. Há cerca de dois mil e quinhentos municípios cujo PIB per capita (o valor agregado econômico que cada habitante produz) é inferior a trinta por cento do PIB per capita brasileiro. Existem muitas regiões do país que são subdesenvolvidas ou que entraram num processo de decadência econômica. As principais que mais se destacam: o Agreste e o Sertão do Nordeste, o Norte de Minas, o Vale do Jequitinhonha, o Vale do Mucuri, muitos municípios de áreas desmatadas da Amazônia.

O que há de comum entre os municípios e as regiões que compõem as áreas economicamente deprimidas do Brasil? Como se sabe, as áreas economicamente deprimidas se caracterizam por: infraestrutura econômica e social básica em precárias condições de uso, baixas taxas de crescimento, insuficiência de absorção de mão de obra, elevados índices de pobreza e de carência de serviços sociais, intensas desigualdades sociais e intrarregionais (rural e urbana). Historicamente, quase todas essas áreas se tornaram deprimidas porque utilizaram predatoriamente a sua base de recursos naturais: os seus rios e afluentes, as suas matas e suas florestas, a sua rica biodiversidade, as suas terras férteis. O empobrecimento do meio ambiente (desmatamento, uso não sustentável da fertilidade do solo, assoreamento dos rios, etc.) provocou o empobrecimento das populações por causa da baixa produtividade dos recursos naturais que constituem sua base econômica.

Após o rompimento das barragens da Samarco em Mariana, diversas áreas de Minas e do Espírito Santo (inclusive na sua faixa litorânea) sob a influência do Rio Doce e de seus afluentes se degradaram do ponto de vista ambiental, econômico e social, como poderá ser observado quando os primeiros indicadores forem sendo elaborados ao longo das próximas semanas. Pressupondo que as autoridades do governo federal e dos governos estaduais, assim como a Vale e a BHP, não realizem programas e projetos para recuperar e revitalizar as áreas que foram degradadas pelos impactos adversos desse escandaloso desastre ecológico, essas áreas tenderão rapidamente a se tornarem economicamente deprimidas com todas as mazelas sociais decorrentes.

Para sobreviver, essas áreas dependerão economicamente de transferências de renda para as famílias mais pobres e de transferência de recursos fiscais para as prefeituras municipais. De fato, os municípios e regiões economicamente deprimidas tendem a viver num regime de economia de subsistência. Em torno de cinquenta a sessenta por cento das famílias que ali residem vivem de transferências do Bolsa-Família, dos Benefícios de Prestação Continuada, da Previdência Rural. Em torno de sessenta a setenta por cento da arrecadação das prefeituras municipais advêm de transferências do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), do Fundo de Saúde, do Fundo de Educação. Numa linguagem muito franca e direta, os municípios e as regiões das áreas economicamente deprimidas estão sobrevivendo penosamente por meio de mesadas financeiras do governo federal. Não é isso que queremos para as populações e as localidades na área de influência direta do Rio Doce e de seus afluentes, nem é o que elas aspiram para o seu futuro.

O que fazer? Creio que será necessário conceber e implementar um Plano-Diretor Decenal para Recuperar e Revitalizar as Áreas Degradadas pelo Rompimento das Barragens da Samarco em Mariana. O Plano-Diretor complementa as urgentes ações imediatas que devem ser realizadas em beneficio do bem estar social das famílias que foram profundamente prejudicadas por esse desastre ecológico. Sem um Plano-Diretor elaborado através de processos de planejamento participativo e com visão integrada em todas as dimensões do desenvolvimento sustentável, corre-se o duplo risco de limitar a execução das ações apenas às questões onde a vocalidade política for maior mesmo que não sejam as ações prioritárias e mais cadentes, ou realizar ações de forma isolada, parcial e segmentada sem gerar a sinergia para uma indispensável e inadiável grande transformação regional.

Algumas ações programáticas são menos difíceis de serem dimensionadas economicamente: a construção de moradias, a reconstrução da infraestrutura econômica e social das cidades e povoados, a recuperação da malha de estradas vicinais, a limpeza física e sanitária das áreas atingidas pelos rejeitos de minérios, ações preventivas de saúde pública, etc. Por outro lado, há danos e perdas das populações mineiras e capixabas muito valiosas que não têm preço: vidas que se foram ou tensões e desequilíbrios psicológicos que emergiram durante o sofrimento da crise socioambiental.

O fato de serem contextos de imenso valor que não têm preço, não exclui, contudo, compensações financeiras que têm que ser atribuídas aos desalentados. É preciso saber também qual o valor econômico da recuperação e da revitalização do Rio Doce e seus afluentes para estabelecer uma mesa de negociação de acerto de contas com a Vale e a BHP, as responsáveis em última instância pelos eventos catastróficos.

Uma complexa questão que se antecipa para realizar a avaliação de um grande ativo ambiental (uma bacia hidrográfica, uma floresta nativa) é que muitos bens e serviços ambientais por se assemelharem mais a bens públicos do que a bens privados não conseguem desenvolver mercados para avaliações monetárias apropriadas. Além do mais, como nos adverte documento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA): “avaliação, inclusive avaliação econômica, funciona como um sistema de projeção cultural que impõe um modo de pensar e uma forma de relacionamento com o meio ambiente e reflete realidades particulares percebidas, cosmovisões, estruturas mentais e sistemas de crença”.

Assim, qualquer tentativa de avaliação econômica da recuperação e da revitalização do Rio Doce e de seus afluentes poderá gerar controvérsias intermináveis em função das diferentes ideologias ambientalistas as quais podem criar obstáculos para que se delimite o comprometimento responsável dos protagonistas principais quanto à execução do Plano no longo prazo.

Sugere-se, pois, que se adotem procedimentos que o Ibama, uma instituição do governo federal, vem utilizando nas suas análises e avaliações dos impactos dos grandes projetos de investimento sobre a perda da biodiversidade, a morte de um rio ou lago, a saúde pública e a vida humana, etc. O Ibama procura calcular o valor econômico total de um recurso ambiental (o Rio Doce e seus afluentes no nosso caso) para a sociedade. Esse valor é igual à soma do valor do uso direto mais o valor do uso indireto mais o valor de opção mais o valor de existência do recurso ambiental.

O valor de uso direto é o valor atribuído ao recurso pelos indivíduos e pelas organizações que usufruem dos insumos e dos produtos do meio ambiente. Destacam-se: a dessedentação humana e animal, a pesca, a produção de energia, a irrigação, as atividades de lazer e recreação, etc. Os valores de muitos desses insumos e produtos podem ser calculados por levantamentos e informações de mercado.

O valor de uso indireto corresponde às funções ecológicas, as quais podem ser melhor compreendidas pelo valor do dano causado ou pelo seu custo de reposição. Destacam-se: o ciclo de nutrientes, a preservação do habitat para espécies da fauna e da flora, o equilíbrio do microclima, a redução e a absorção da poluição, a educação ambiental, a preservação dos mananciais, etc.

O valor de opção está relacionado com o montante financeiro que os indivíduos e as organizações estariam dispostos a pagar para conservar o recurso ambiental (um parque ecológico, por exemplo) para um uso futuro e saber que outros se beneficiarão desse recurso ambiental no futuro.

Finalmente, o valor de existência está relacionado com as avaliações monetárias dos ativos ambientais, sem vinculação com o seu uso corrente ou o seu uso opcional. É um componente importante do valor econômico total, particularmente em situações de incerteza quanto à extensão dos danos ou ativos únicos (espécies raras de flora e fauna, banco genético potencial nas florestas tropicais, etc.). Inclui valores espirituais, culturais e históricos dos ecossistemas. Quando o desejo de preservar um ativo ambiental está vinculado aos benefícios e bem estar para os seus descendentes, temos o caso do valor de legado.

Desta forma, o conceito de valor econômico total de um recurso ambiental mostra que a preservação, a conservação e o uso sustentável da biodiversidade abrangem uma ampla e complexa variedade de bens e serviços, começando pela proteção de bens tangíveis básicos para a subsistência do homem, como alimentos, dessedentação e energia, passando pelos serviços ecossistêmicos que apoiam todas as atividades humanas e terminando com valores de utilidade simbólica, sendo o valor do rio um valor intrínseco (bioética) e não apenas um valor instrumental. Embora as estimativas do valor do recurso ambiental sejam controversas, elas podem ser confiáveis se forem adotados os métodos de avaliação monetária dos custos e benefícios apresentados pelo PNUMA.

Um problema atual é a forma como a opinião pública brasileira atribui valor econômico à água. Considera esse valor apenas como valor de uso direto. Pouca ponderação atribui aos valores de uso indireto, de opção e de não uso em geral, o que leva a tratar a água normalmente como um produto ou um insumo relativamente abundante, não escasso ou quase livre, sem se preocupar com sua conservação para as gerações futuras.

Para a sociedade brasileira, o Rio Doce e os seus afluentes são, pois, parte do patrimônio e da riqueza nacional que têm que ser conservados, preservados e reabilitados para as gerações presentes e futuras. Como dizia Guimarães Rosa: “A água de boa qualidade é como a saúde e a liberdade; só tem valor quando acaba”.

Para as duas empresas envolvidas tanto na responsabilidade pelo desastre ecológico quanto na responsabilidade pelo financiamento da recuperação e revitalização do Rio Doce e das áreas degradadas, prevalece o conceito moderno de responsabilidade social ampliada das grandes corporações com as populações das regiões em que se localizam seus projetos de investimentos. Uma responsabilidade social ampliada que visa à integração dos objetivos de eficiência econômica, equidade social e sustentabilidade ambiental em suas atividades e missão institucional. Não podem tratar essas regiões como se fossem mega almoxarifados de recursos naturais onde extraem suas fontes de lucros, sem se preocupar com as questões éticas envolvidas nos danos ecológicos para as atuais e futuras gerações.

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