quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A morte segundo o Budismo da tradição Bon


O Budismo da tradição Bon é “a mais antiga tradição espiritual do Tibet e inclui ensinamentos e práticas aplicáveis a todas as partes da vida, incluindo nossa relação com as qualidades elementais da natureza, nosso comportamento ético e moral, o desenvolvimento do amor, da compaixão, da alegria e da equanimidade”.
Essa afirmação é da Ligmincha International, instituição internacional que tem uma represente brasileira, a Ligmincha Brasil – com a missão de preservar o Budismo Bon no Brasil. Para isso, organiza palestras, cursos online gratuitos, livros, documentários e workshops com o Geshe Tenzin Wangyal Rinpoche, que virá ao Brasil em 11, 12 e 13 de março para o workshop “Conectando-se com o Universo Vivo: Ensinamentos sobre os Cinco Elementos”.
Conversei com Geshe Tenzin Wangyal Rinpoche sobre a visão da morte dentro de sua tradição. “Tenzin” se refere a um lama, sacerdote budista. Geshe é o título de “doutor em budismo” e de yôgui – quer dizer que ele não é monge, é casado e tem um filho. Rinpoche significa precioso em tibetano. É um título usado para indicar um alto lama, geralmente reconhecido como uma nova emanação de um mestre antigo.
Ele é autor dos livros: “A Cura Através da Forma, da Energia e da Luz” – (ed. Pensamento,2 005); “Os Yogas Tibetanos do Sonho e do Sono” (ed. Devir, 2010); “Maravilhas Da Mente Natural” (Ed. Devir, 2011); “Despertando o Corpo Sagrado – Yogas Tibetanos da Respiração e do Movimento” (Ed. Devir, 2013); “Despertando a Mente Luminosa” (Ed. Devir, 2015).
A entrevista foi feita em inglês, por skype, e traduzida por mim. Procurei me manter o mais fiel possível à sua forma de se expressar. Boa leitura.
Veja mais na série: “a morte segundo as religiões”.
 Nas suas palestras, você menciona 5 elementos necessários para a criação (água, fogo, terra, ar e espaço). Como esses elementos se relacionam no processo de morte?
Qualquer criação, seja um lago, uma montanha ou uma casa, segue uma sequência determinada. Se você quiser construir uma casa, primeiro você precisa da terra (do espaço no qual ela será construída), depois você passa para o processo da construção em si, onde você precisará da água, do cimento, de todos os elementos concretos para a construção. O corpo humano segue o mesmo princípio, ele vem da chamada consciência, que surge do espaço profundo (e seria o elemento espaço, como chamamos) e aí vem o vento, o ar, o suspiro, que chamamos de prana ou tchi. Há um vento específico que chamamos de karmic Wind (vento cármico) que produz o fogo. O fogo e o vento produzem a umidade necessária para a existência do corpo físico. Cada elemento trará uma energia ao corpo físico. O elemento terra remete à carne, o elemento água seria o sangue, o fogo é o chi do corpo – o sistema digestivo, o vento é nossa respiração e o espaço é a consciência. A sequência da criação é espaço – vento – fogo – água e terra.
A sequência da dissolução (morte) é oposta à da criação. Quando morremos, a dissolução ocorrerá da terra ao espaço (terra- água – fogo – vento e espaço).
No momento da morte, as pessoas leem uma prece chamada Bardo por 3 dias e 4 noites, por 24 horas sem parar. Essa prece fala sobre o processo da dissolução do corpo, como ele ocorre e por que. Também menciona que não devemos teme-lo. É todo um processo que envolve uma série de conhecimentos a respeito.
Observação da Camila: o Tenzin me enviou a prece. Ela diz que quando a energia do elemento terra se dissolve em água, experienciamos o colapso do corpo, com visões esfumaçadas e miragens. Quando a energia da água se dissolve no fogo, o corpo empalidece e a pessoa fica com muita sede, com a língua seca. Há visões de enchentes. Quando a energia do fogo se dissolve no vento, o corpo fica frio e os canais não podem mais ser sustentados (os budistas e yôgues acreditam que as energias sutis do corpo passam por estruturas que chamam de canais). A pessoa tem visões de “moscas de fogo”. Quando a energia do vento se dissolve na consciência, a respiração para, os olhos giram para cima e há visões como a de assoprar uma lamparina. Quando a consciência se dissolve na base de tudo, a sensação dos órgãos internos cessa.
Como alguém pode meditar sobre a morte e quais aprendizados pode-se tirar disso?
 Uma das coisas mais desafiadoras e difíceis que temos como seres humanos é nos adaptarmos a mudanças em nossas vidas, independente de serem mudanças boas ou ruins. A ideia de mudança é assustadora e é muito difícil querermos mudar. Então, como um ser humano, sabemos menos sobre a beleza da nossa existência e mais sobre aquilo que consideramos ser nosso, nos pertencer: minha vida, meu marido, meu trabalho. E quando perdemos algumas dessas coisas, temos muita dificuldade de processar a perda.
Mudanças são muito difíceis e a morte é uma grande mudança, por isso ela é difícil de ser aceita. As pessoas acham que a morte é o fim das coisas, ela é vista como um fracasso. É difícil aceitar um fracasso, é difícil aceitar um fim, é difícil aceitar o desconhecido, é difícil aceitar o não ter o controle sobre alguma coisa. Então, em nosso sistema de meditação, tentamos encarar a realidade da morte: ela existe, vai acontecer e não adianta evitá-la como nossa cultura faz. Por isso, vamos falar a respeito, vamos sentir, vamos nos preparar para morrer, e assim, vamos morrer melhor. Não significa que não amamos a vida e uns aos outros, mas sim que aproveitamos a vida e estamos, ao mesmo tempo, nos preparando para a morte. Tentamos atingir um momento de profunda meditação, de calma e silêncio interno e entrar num estado onde a consciência atinge seu estado de “espaço”, no qual você percebe que não existe um fim, que na essência você não vai mudar, porque o espaço não muda. Uma nuvem pode mudar, ventos podem ir e vir, tempestades podem ir e vir, mas não poderão afetar o espaço. Da mesma forma, você envelhece, adoece, várias mudanças ocorrem, mas você nunca vai mudar. Se você experienciar esse estado mais vezes, terá menos medo da morte e poderá se preparar melhor. Recomendo a leitura do livro “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer (ed. Palas-Athena, 2015)” e o meu livro “Os Yoga Tibetanos do Sonho e do Sono” (ed. Devir, 2010). Esse livro fala sobre como o sonho está relacionado com a morte, na medida em que a prática de sonhar lucidamente pode ajudar na preparação para a morte.
Como você recomendaria falar sobre morte com crianças?
Crianças já falam sobre morte entre elas. Então eu acho que, ao invés de falar sobre morte com as crianças, deveríamos escutá-las quando elas falam sobre a morte entre si. Isso me parece mais importante. Aí você pode entrar com cuidado na discussão, falando que a morte não é algo errado, que é algo natural, que elas não precisam ter medo, que é ok falar a respeito. Um dia, meu filho de dez anos estava triste refletindo sobre a morte. Ele me perguntou se eu ia morrer um dia e eu disse que sim. Ele não queria que as pessoas morressem, não entendia porque todo mundo tinha que morrer. E comentou que na próxima reencarnação queria ter o mesmo pai e a mesma mãe, não queria começar tudo de novo com “estranhos” (risos). Em um minuto, ele estava chorando e logo em seguida mudou de assunto completamente – me disse que gostaria de casar com uma mulher tibetana mas havia poucas tibetanas nos Estados Unidos (onde vivemos). Ele passou do assunto “morte” para planejar sua vida.
Você acredita que a morte do corpo é necessária para a raça humana? Poderíamos ter um corpo imortal com os avanços da medicina, por exemplo?
A morte do corpo físico é muito importante para o processo. Sua morte nessa Terra é tão importante quanto seu nascimento nessa Terra.
Podemos nascer em outros planetas?
Claro. E também podemos nascer nessa Terra em qualquer outra forma, como pássaros e assim por diante.
Por que não podemos acessar esses outros universos?
Esqueça os outros planetas, temos que antes de tudo aprender a nos comunicar entre nós, nesse planeta aqui. Aí podemos tentar nos comunicar com outros universos (risos).
Você costuma dizer que nós não envelhecemos e não morremos. Em que sentido isso ocorre?
No sentido de que nossa essência – a consciência – é um espaço além do tempo e não envelhece. Se você lembrar de um momento em que estava triste ou chorando, você pode pensar que estava perdendo alguma coisa naquele momento. Mas há muitas coisas que você não estava perdendo naquele momento. Você não está perdendo seu corpo, seus olhos, seus pais, sua casa. Mas você não pensa nisso, você pensa na perda. Temos a tendência de focar no que não está durando, no que estamos perdendo.
O sonho lúcido comentado pelo budismo se assemelha a conceitos como a projeção astral (ou projeção consciente) e experiências fora do corpo?
Não entendo muito bem o que as pessoas querem dizer com projeção astral, mas as pessoas têm a tendência de se desconectar de seu corpo e se desconectar da realidade. Em nossos ensinamentos, não recomendamos isso. A prática do sonho lúcido é a habilidade de trazer maior flexibilidade e conscientização ao mundo real. No mundo não real não temos flexibilidade, ficamos presos, emperrados. No sonho, temos essa flexibilidade e maior liberdade. Então seria trazer esse comportamento de sonho para a realidade, com liberdade total.
O que significa, na prática, ter essa liberdade total?
Não tomar decisões com base em medos e esperanças, mas sim na conscientização (awareness) e naquilo que a situação requer. Não seria focar no presente, mas sim estar no presente, baseado no que o presente requer e não nas necessidades dos seus medos. Por exemplo, quando um cristal brilha, o cristal não planeja brilhar e ele não ficará ofendido se você falar que o brilho dele não é tão bom. Se a mente precisar brilhar, ela brilhará, mas se não houver uma razão para brilhar, ela não brilhará. Não há uma personalidade. Liberdade total é não ter personalidade.
Há evidências que suportam alegações de reencarnação?
Pessoalmente, eu prefiro não falar muito sobre isso. Mas a Universidade de Virginia tem feito um trabalho grande sobre as pessoas que lembram de suas vidas passadas e eu recomendo que os interessados olhem para esse trabalho acadêmico. (observação da Camila: sobre isso, encontrei os trabalhos de Ian Stevenson, que foi o diretor do departamento de psiquiatria da Universidade de Virginia e tem pesquisas e livros a respeito).
Mente e cérebro são a mesma coisa?
São diferentes. O cérebro é o suporte da mente, como uma casa. A mente já está presente antes do cérebro existir. Muitas pessoas sem teto pensam que elas têm uma casa, e elas têm, porque o universo é a casa delas. É difícil ver o universo como sua casa. É uma perspectiva completamente diferente de espaço. Demências muitas vezes não estão apenas associadas ao cérebro, porque pode haver a interferência de componentes cármicos, por exemplo.
Há formas de provar que são diferentes?
Os neurologistas falam muito em plasticidade do cérebro hoje em dia. Mas o cérebro não expande sozinho, alguém faz esse processo. Isso é um sinal de que a mente está presente e influencia o cérebro. A mente pode mudar as químicas do cérebro, o tamanho do cérebro, a flexibilidade do cérebro. Esses são sinais claros e eu tenho certeza de que outros virão.
Há alguma questão sobre consciência, corpo, vida ou morte que a ciência ainda não conseguiu responder?
Eu tenho certeza de que há muito que a ciência não sabe e continuará não sabendo totalmente se não mudar sua metodologia. A ciência sempre requer que algo seja repetido. Mas num nível muito profundo, a repetição é sempre criada pela mente que está buscando um sentido. Então, objetivamente, é muito difícil de analisar, porque a mente ofusca tudo.
Há uma relação entre doenças físicas e a mente?
Sim, todas as doenças físicas são um produto da mente. A mente pode criar, prevenir, curar, ou pode piorar uma doença. Se a mente está num lugar meditativo de silêncio e quietude, ela vai prevenir doenças. Se a mente estiver totalmente desconectada com isso e se projetar nos seus medos, fará a doença piorar. O instrumento para colocar a mente nesse local é a meditação. É claro que outras coisas ajudam, como uma boa massagem, o contato com a natureza, estar ao lado de pessoas boas… Tudo aquilo que oferecer o mesmo resultado que a meditação oferece.
O que é o Budismo Bon e qual sua diferença em relação ao Budismo Tibetano?
O Bon é a tradição mais antiga do Tibet, a mais anciã, que há existe há milhares de anos, antes do Budismo Tibetano. Muitos ensinamentos são semelhantes e outros tornaram-se semelhantes ao longo do tempo. O Budismo Bon é mais conectado com os elementos (os 5 elementos) e com a natureza. Alguns cânones (um conjunto de textos sagrados) são diferentes, alguns deidades são diferentes, a ênfase no trabalho com os elementos e com a natureza é bem diferente também, mas no que se refere a praticar compaixão, acreditar em carma e reencarnação é o mesmo.
Porque a cremação é preferível ao enterro?
De maneira geral, a cremação é a dissolução do corpo no espaço e nesse sentido parece ser uma forma mais limpa de dissolução do que deixar algo para trás (como no enterro). Tipicamente, deve-se esperar 3 dias e 4 noites para rezas, antes da cremação.
Você pode falar com os mortos?
Eu não cheguei a falar, mas tive uma sensação de comunicação quando meus pais morreram. Mas é possível falar com os mortos sim.
Você chora quando alguém que gosta muito morre?
Sim, eu chorei quando minha mãe morreu. É um sofrimento natural. É bom poder experienciar o luto e expressá-lo.
Foto de   ligmincha.org-2
Arquivo pessoal

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