terça-feira, 25 de março de 2014

Ex-comandante revê história do 1º foco guerrilheiro contra ditadura. Amadeu Felipe, de 78 anos, liderou guerrilheiros durante nove meses da região do Parque Nacional do Caparaó


Daniel Camargos - Enviado Especial -Estado de Minas
Publicação: 25/03/2014 06:00 Atualização: 25/03/2014 10:24

Londrina (PR) – Da varanda de um belo apartamento à beira do lago Cambé, no Bairro Jardim Caiçaras, um dos mais nobres da cidade da Região Norte do Paraná, Amadeu Felipe, de 78 anos, se refere aos seus vizinhos como "pequenos burgueses". Declara-se comunista e vislumbra um novo modo de produção para o mundo. "A sociedade capitalista está contando seus dias", crava Amadeu, que há 47 anos tentou mudar a ordem e derrubar a ditadura militar (1964-1985) à força – com armas em punho –, quando comandou a Guerrilha do Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo. Quase duas dezenas de homens, a maioria militares de baixa patente, se aliaram ao então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e financiados com dinheiro enviado pelo governo cubano, tentaram criar o primeiro foco guerrilheiro do Brasil, seguindo a cartilha de Che Guevara e os preceitos de Mao Tsé-Tung. É esta história que o Estado de Minas conta hoje dentro da série de reportagens sobre os 50 anos do golpe militar
Amadeu é um senhor simpático e apaixonado pela netinha de 5 anos, a quem ele dedica boa parte do dia. Pelo menos é assim que a zeladora do condomínio Dolce Vita o vê. Ela não faz ideia do passado de Amadeu e questiona a razão de um repórter de um jornal mineiro procurar por ele antes das 9h de uma terça-feira. Ao ser informada laconicamente que o morador do 17° andar é um importante personagem da história recente do Brasil, a zeladora faz cara de espanto e quer saber a razão.
Do terceiro sargento no Exército do Rio Grande do Sul, que apoiou, junto de seus pares, o então presidente João Goulart, em 1961, quando os militares tentaram derrubar o presidente gaúcho, até o senhor dos dias atuais, um bom pedaço da história do Brasil foi visto pelos olhos que começam a ficar com a visão opaca com a chegada da catarata. Ao lado dos que lutaram pela permanência de Jango, em 1961, Amadeu conheceu Brizola, governador do Rio Grande do Sul à época e comandante da Campanha da Legalidade, que garantiu o presidente gaúcho no cargo, com a condição de que Tancredo Neves fosse nomeado primeiro ministro. Três anos depois, em 1964, os militares conseguiram derrubar Jango definitivamente.
Brizola se exilou no Uruguai e os sargentos começaram articular para derrubar o governo militar. Juntos formaram o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). O plano inicial era fazer um levante no Rio Grande do Sul, nos moldes do que ocorreu na Campanha da Legalidade, e, assim, retirar o poder das mãos dos ditadores.
Na noite de 24 de dezembro de 1964 Amadeu e outros dois companheiros do Exército foram encontrar Brizola em Montevidéu. "Ele (Brizola) disse que toparia ajudar a guerrilha rural, mas a condição era tentar antes o levante no Sul e tomar o Rio Grande", recorda Amadeu. O plano dos sargentos era partir logo para a guerrilha rural, seguindo a teoria chamada de foquismo, cujo maior expoente foi Che Guevara, um dos responsáveis pelo sucesso prático da tese, quando, junto de Fidel Castro e outros companheiros, derrubou a ditadura de Fulgêncio Batista em Cuba, em 1959.
O local escolhido pelos sargentos para ser a versão brasileira da Sierra Maestra foi a região do Parque Nacional do Caparaó, onde fica o Pico da Bandeira, que à época ainda era considerado o mais alto do Brasil. Antes de partirem para a divisa de Minas com o Espírito Santo, os sargentos, com Amadeu Felipe à frente, tentaram fazer um levante no Rio Grande do Sul, conforme acordado com Brizola.
O velho Caudilho, como Brizola ficou conhecido depois, passou os contatos que tinha na divisão gaúcha do Exército e na Brigada Militar (como é chamada a Polícia Militar de lá) para os sargentos. Amadeu lembra que, já clandestino, conseguiu entrar na cadeia em que estava preso o coronel da Brigada, Átila Nunes, para conspirar. "Conversei durante uma hora com ele e com outros militares", lembra. De acordo com Amadeu, a Brigada estava de acordo com os planos de Brizola, que além dos sargentos tinha apoio também dos funcionários dos Carris (como eram chamados os bondes) e da empresa de energia elétrica. "Podíamos parar tudo em Porto Alegre", destaca Amadeu.
Porém, quando faltavam 48h para o levante, acontece um fato inusitado. "Um dos oficiais da Brigada Militar com quem havia conversado e facilitou a entrada para que eu conversasse com o Átila teve uma dor de barriga nervosa e contou para a mulher, que mais que depressa entregou tudo para o comandante da Brigada", lamenta Amadeu. "Foi um atraso. Nós teríamos conseguido, pois havia uma adesão grande e o golpe militar estava desmoralizado", resigna-se.
Negociador
O acordo feito com Brizola era primeiro tentar o levante no Rio Grande do Sul e depois partir para a guerrilha rural. Com o fracasso da insurreição em terras gaúchas, Brizola apoiou a ideia do foco guerrilheiro. Amadeu e os outros sargentos partiram para o Rio de Janeiro. Mais do que clandestinos depois do fracasso do levante, eles estavam com a cabeça a prêmio e eram caçados pela repressão, como destaca Amadeu. "Recebi recados para sair do país, pois eles não poupariam minha vida", recorda.
Na capital fluminense, Amadeu conversou com Anivanir de Souza Leite, um para-quedista que tinha família em Manhumirim, na Zona da Mata mineira. Os sargentos também fizeram contatos com os militantes da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), que já haviam sondado um possível foco de resistência na região do Caparaó.
Antes de contar os detalhes da guerrilha, que estava prestes a começar na narrativa, Amadeu faz uma pausa na entrevista para ir com a filha e a neta almoçar em um restaurante self-service do bairro. A netinha vê a medalha Dinarco Reis concedida pelo Partido Comunista Brasileiro ao tio de Amadeu, homônimo dele, que havia sido mostrada ao repórter, e pede para levar a condecoração para a escola. O ex-guerrilheiro consente. No restaurante, Amadeu não almoça e explica que é um hábito que adquiriu nos nove meses passados embrenhado nas matas do Caparaó. Toma um café da manhã reforçado e só come novamente à noite. Faz assim há quase 50 anos.
Com muita paciência dá comida na boca da neta, compra um picolé para ela e segue dirigindo para deixar primeiro a filha em uma escola pública, onde ela leciona, e depois a neta na escola religiosa comandada por freiras. Amadeu leva mais de 15 minutos dentro do colégio e na volta explica ao repórter, que aguardava no carro, o motivo da demora: "Tive que negociar para pegar a medalha. A Duda (neta) estava mostrando para as amigas e a freira fez um olhar de quem não estava gostando muito. Medalha de comunista em colégio de freira não fica bem".
Amadeu trocou a medalha com Duda por uma garrafa pet. A atividade do dia da escola pedia que cada criança levasse uma dessas garrafas vazias. Como nem na casa de Amadeu e nem na casa da filha dele bebe-se refrigerante, Duda foi de mãos vazias. Amadeu conseguiu uma na última hora e convenceu a neta a trocar a medalha pela garrafa vazia.
O perfil negociador, aliás, é uma das razões que levam alguns comandados de Amadeu na guerrilha do Caparaó a acusá-lo de ter acordado a rendição com os militares. As versões dos outros guerrilheiros podem ser lidas no livro Caparaó (Editora Boitempo, 2007), escrito por José Caldas da Costa. Fato que Amadeu nega veementemente. "Quando eu vi que não eram camponeses e eram policiais só eu estava com um fuzil na mão. Teria a chance de matar um e depois morrer. Não ia ser só suicídio. Ia ser uma chacina. Eu sempre tive algo muito bom, que é não perder a calma. Se não fosse assim não estaríamos conversando aqui hoje", afirma Amadeu sobre o momento em que foram presos, quando ele era o responsável pela guarda do acampamento.
A guerrilha
Entre o início da guerrilha e a prisão dos oito que restaram no Caparaó, no dia 1º de abril de 1967, transcorreram nove meses. Além dos sargentos, havia também por determinação do comando de Montevidéu, liderado por Brizola, marinheiros que fizeram treinamento de guerrilha em Cuba. Amadeu lembra que naquela época havia um plano articulado por Cuba e comandado por Brizola no Brasil de serem feitos vários focos guerrilheiros.
Além do Caparaó, comandado por ele, haveria outro no Mato Grosso e um terceiro na divisa entre Maranhão, Pará e Goiás (hoje Tocantins), que anos depois seria palco da Guerrilha do Araguaia, cujos guerrilheiros não tiveram o mesmo destino e foram mortos barbaramente pelo Exército. O plano maior, segundo Amadeu, era de uma integração com o movimento guerrilheiro de Che Guevara na Bolívia, massacrado seis meses depois da queda do Caparaó.
m meados de 1966, o governo federal estava indenizando cafeicultores do Espírito Santo para substituir a lavoura. "Quem tinha terreno recebia o dinheiro e podia plantar, mas e o trabalhador rural? A gente via retirantes na estrada, como no Nordeste na época das grandes secas, indo embora para os centros urbanos", recorda Amadeu. O contexto social da região foi um dos motivos de terem escolhido o Caparaó, além, é claro, de não ser próximo dos grandes centros, como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, o que daria um pouco de trabalho para as forças repressivas.
Quando chegaram ao local os guerrilheiros se instalaram em um sítio arrendado da família do para-quedista e aos poucos foram reconhecendo a região do parque, até passarem a sobreviver somente na mata. O objetivo era, sempre seguindo os preceitos de Che e Mao, conhecer a região como a palma da mão, para, quando fosse necessário, atrair os militares que estavam no poder e derrotá-los no local. A frase de Guevara sobre criar "um, dois, três, vários Vietnãs" era uma espécie de mantra, uma referência à derrota dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Mas, as dificuldades eram grandes. O abastecimento de comida não era ideal e por muitas vezes chegaram a passar fome. Amadeu lembra que em uma ocasião comeram ovos chocos, com o pintinho já começando a se formar.
Amadeu era o comandante, mas dependia do aval de Brizola para o momento de atacar. O contato era feito pelo núcleo urbano da guerrilha, que ficava no Rio de Janeiro e cuidava do abastecimento de armas e comida, além de fazer o elo entre os guerrilheiros e o político gaúcho. "O Brizola deu autonomia em termos. Ele topou a montagem da guerrilha, mas queria discutir o momento de uma atitude armada ou tomar uma cidade", recorda Amadeu.
O desejo dos guerrilheiros, segundo Amadeu, era tomar a cidade de Presidente Soares, hoje chamada de Alto Jequitibá, com apenas 8 mil habitantes, que à época não passava de 6 mil. "Tomar a delegacia de polícia, pegar o armamento, tomar o correio, o juizado, o banco, pegar os recursos e fazer um comunicado", detalha. Porém, o aval não foi dado por Brizola. "Quando o Brizola negou a tomada de Presidente Soares, o pessoal perdeu o ânimo", acredita Amadeu.
Para o comandante, a história poderia ter sido outra se eles tivessem tomado Presidente Soares. "Criaria um princípio e mostraria que é possível. Teríamos algumas horas para ficar como donos da cidade e depois faríamos o recuo. Isso era pensado, mas o Brizola nunca concordou com a possibilidade", lamenta. Dos 17 guerrilheiros que estiveram no Caparaó o grupo estava reduzido a oito quando a Polícia Militar de Minas Gerais (PM) os prendeu, sem resistência e muito fracos, pois alguns chegaram a contrair peste bubônica.
Todos foram presos e também outros militantes que vieram do Rio de Janeiro após a queda, em busca de notícias acabaram capturados. Amadeu conta que o que salvou a vida deles, pois acredita que havia ordens do exército para executá-los, foi uma fotografia feita por Geraldo Viola e publicada na Revista O Cruzeiro. A foto foi feita antes do embarque para Juiz de Fora, onde ficaram presos na penitenciária de Linhares. "O coronel da PM Jacinto Franco do Amaral ligou para a imprensa e permitiu que fôssemos fotografados. Ele salvou a vida da gente, pois essa foto foi para o mundo todo", acredita.
Comunista de berço
Enquanto dirige pelas ruas de Londrina, cidade com alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), Amadeu conta um pouco da história do município de 540 mil habitantes que adotou para viver depois que saiu da prisão, em abril de 1971, e discorre sobre as desigualdades sociais. Nascido em Blumenau, em Santa Catarina, Amadeu é bisneto de Hercílio Pedro da Luz, que governou Santa Catarina por três oportunidades entre 1894 e 1924. Foi criado pelo padastro, oficial do exército e filiado ao Partido Comunista Brasileiro. "Eu sou comunista e sou comunista desde menino. Tive o privilégio de ser educado por um oficial de Exército que casou com minha mãe, pois meu pai morreu quando eu tinha quatro anos. Ele era do partido e me educou lendo Jorge Amado e toda a literatura comunista e me deu exemplos muitos verdadeiros", orgulha-se Amadeu.
O ex-guerrilheiro entende que o comunismo não é a solução ideal e que um novo modo de produção deve ser desenvolvido. "Essa nova sociedade deve ter caráter socialista e características humanistas", aponta. Mesmo sem crer no comunismo como solução ele se diz comunista. "É a única teoria que trata como questão clara a distribuição de renda de forma comum a todos. Ela já foi pensada, mas precisa ser aperfeiçoada. Ela precisa ser aperfeiçoada na prática, pois é na prática que se constroem as coisas", entende o ex-guerrilheiro.
Após sair da prisão, Amadeu se tornou sócio de um cunhado em uma empresa de refrigeração e com isso criou a família. Seus três filhos, outros dois filhos de uma irmã que morreu jovem e mais dois enteados. "Quando eu sai da prisão onde eu fosse eu estava queimado. Além disso, eu tinha duas crianças que até então eu não conhecia", destaca. Além da família, ele disse que se convenceu de que a possibilidade de "virar o jogo" por meios armados seria muito difícil.
Passou a militar clandestinamente no PCB na década de 1970 e em 1985 foi o candidato a deputado federal mais votado do partido no Paraná, mas não foi eleito. No início dos anos 2000 tentou ser prefeito de Londrina e na última eleição se candidatou a governador do Paraná, sempre pelo PCB. "Foi mais uma afirmação partidária e individual. Não havia nem tempo de campanha e nem dinheiro", lamenta Amadeu.
Milico
Na década de 1990 Amadeu foi anistiado e reintegrado às Forças Armadas. Promovido a capitão, ele recebe o soldo de major. O capitão, entretanto, não ameniza as críticas ao militarismo. É a favor, inclusive, da desmilitarização das polícias militares. "O policial fardado se sente como um milico e o milico não é bom conselheiro para segurar movimento. O milico é para fazer guerra", afirma.
Sobre os movimentos que tomaram as ruas no ano passado e prometem agitar novamente durante a Copa do Mundo, Amadeu atribui os excessos à ação da polícia. "A violência é puxada pela polícia. A violência policial é que gera a violência dos movimentos. Quando você se acostuma a fazer violência para se defender você também faz a outra violência agressiva, que não tem sentido", entende Amadeu.
Ele não consegue enxergar nenhum legado positivo no que os militares deixaram para o país durante mais de duas décadas de governo. "Foi uma subordinação ao capital internacional terrível", lamenta. O ex-guerrilheiro acredita que Jango estava prestes a promover avanços imensos para o país, com as reformas de base, e lembra de um episódio, nos dias que antecederam o golpe, quando ele, acompanhado de outros 40 sargentos, foi visitar Juscelino Kubitschek.
"Presidente, vai haver um golpe. O senhor é o maior interessado, pois pode ser eleito na próxima eleição", lembra de ter dito a JK. O ex-presidente telefonou então para o Amaral Peixoto (militar, um dos líderes do PSD e que havia sido ministro de JK), que era genro do Getúlio Vargas, e escutou do conselheiro que aquilo era apenas "papo de sargento", recorda.
Ao rever o passado, após quase um dia de conversa, Amadeu demonstra muito orgulho de sua história. Não guarda rancor e, ao olhar para a própria imagem impressa em um livro, quando foi preso no Caparaó, é impossível não remeter à figura de Che Guevara, ícone máximo dos guerrilheiros e que seis meses depois seria assassinado na Bolívia, quando tentava fazer uma guerrilha naquele país. Pelo cabelo grande, a barba espessa e principalmente pela lendária frase do revolucionário argentino, que pode ser aplicada à trajetória de Amadeu: "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás".
O ex-guerrilheiro faz questão de levar o repórter até o aeroporto, mas volta para casa sem demora, pois precisa ficar de prontidão para sua próxima missão. A qualquer momento pode ser acionado para buscar a neta na escola.

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