quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Militar é militar, polícia é polícia

Alexandre Barros - Estadão

Militares são treinados para ver o mundo dividido entre amigos e inimigos. Sua tarefa é matar os inimigos. Polícias existem para proteger comunidades, e não para matar arbitrariamente. Quando polícias executam culpados, suspeitos, criminosos e quem acontece de estar na linha de tiro, isso é crime. Encarregar profissionais treinados para matar da função de polícia é a melhor maneira de aumentar a truculência e a vitimização de inocentes. Até prova em contrário, só podemos ser punidos por ordem judicial (muitos parlamentares, aparentemente, acham que isso não se aplica a eles). Se o Judiciário é lento, que seja reformado, mas não coloquemos nas armas dos militares a nossa segurança interna e pessoal. Há soldados profissionais e conscritos. Profissionais sabem matar e não se preocupam com as consequências, porque essa é sua função quando em guerra. Conscritos lá estão forçados pela lei, que os obriga a pagar com um ano de trabalho quase gratuito um imposto que o governo cobra por meio do ultrapassado serviço militar obrigatório. Servi ao Exército como soldado (a quem interessar por que não fui aprovado em Matemática no exame do CPOR, mais detalhes no meu artigo Dificuldades em Matemática, publicado nesta página e disponível no link: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090407/not_imp351155,0.php). Aprendemos a fazer continência, marchar, atirar e a não fazer nada. No meu caso, consertar canhões e obuses. Ainda ignoro por que o Exército achou que eu tinha vocação para mecânico de armamento pesado. A experiência foi um pesadelo: viver numa instituição total, que a todos despe de qualquer de individualidade, foi uma oportunidade de aprender como funciona uma instituição total, conceito que só vim a conhecer anos depois, já como sociólogo. O caso mais perigoso do meu serviço militar ocorreu no carnaval de 1962. O quartel ficava numa área do Rio de Janeiro que tem muitos quartéis. Tínhamos de policiar uma praça no subúrbio de Higienópolis (atenção, paulistanos: Higienópolis do Rio não tem nada parecido com Higienópolis de São Paulo; é um subúrbio, naquela época, de classe média baixa). A tarefa era manter a ordem, principalmente se militares se envolvessem em confusões, mas também se civis o fizessem em nossa jurisdição. Soldados comportaram-se bem. Um civil embriagado passou dos limites e cumprimos o dever, para o qual não estávamos preparados: detivemo-lo e o levamos para a delegacia de polícia. Terminada a burocracia, o encarregado, escrivão, agente ou delegado me disse: "Fique tranquilo, cabo. Na Quarta-Feira de Cinzas a gente solta ele." Caiu sobre mim uma culpa enorme. Um cidadão ia passar dois dias na prisão praticamente por nada. E eu tomei consciência de que tinha recebido de meus comandantes essa tarefa. E mais: esse poder. De repente me dei conta de que tinha uma arma - naqueles dias, um revólver calibre 45. E eu tinha o direito de usá-la contra pessoas desordeiras, criminosas ou não. E podia fazer isso legalmente. Até hoje isso está na minha cabeça. Na cabeça ficou-me a insensatez de uma organização entregar uma arma a um menino de 19 anos e dizer-lhe que ele tem o direito de usá-la para defender a ordem pública. Ser policial não é fácil: a vida é dura, grandes dilemas, a tentação permanente da corrupção e a culpa fica presente quando acontece uma morte. Atribuir a função de polícia a militares treinados para matar é muito pior. É irresponsabilidade. Lutamos, no Brasil, para restabelecer o controle civil das Forças Armadas. A tarefa não está terminada. Ainda há muitos fios desencapados nessa área. Dar aos militares poder de policiar entre 1964 e 1979 (ano da anistia) não deu certo e não tem por que dar agora. Para convencer a maior parte das Forças Armadas da legitimidade dessa tarefa foi preciso inventar que o Brasil estava em guerra contra um "inimigo interno". Até hoje oficiais militares se queixam de quanto a corrupção corroeu seus colegas e subordinados naquele tempo. Militares reprimindo cidadãos são resquícios do tempo em que o mundo se dividia entre nobres e plebeus, quando não havia diferenças entre militares e policiais. A democracia exigiu a divisão de tarefas entre militares, treinados para guerras contra inimigos externos, e policiais, para proteger e servir aos concidadãos. Esse é um componente essencial da democracia. As grandes potências coloniais usaram seus soldados para policiar e reprimir populações colonizadas porque elas eram vistas como estrangeiras, inimigas e de raça inferior (a metralhadora, quando foi inventada, só podia ser usada contra "nativos", era uma arma traiçoeira demais para ser usada entre "iguais"). Não somos colonizados, inimigos do País, de raça inferior ou cidadãos de segunda. Não queremos os militares, treinados para matar, com poder de polícia, cuidando de nos reprimir. Usar militares como policiais não faz parte do jogo democrático. Entre 1964 e 1985 (eleição de Tancredo Neves), os militares deram-se o poder de reprimir os que eles definiam como inimigo interno. Tivemos iniquidades, arbitrariedades, torturas e mortes injustificadas (não que não as tenhamos ainda hoje). Não queremos repetir a experiência. Ela não foi boa para nós nem para os militares. Não creio em contágio. Mas experiências de vizinhos, como as do coronel Hugo Chávez, de Evo Morales, Rafael Correa e outros, me assustam. Transformar militares em policiais é retrocesso. É arriscar a volta a tempos arbitrários e violentos. Não temos saudades deles. Declarações de altos funcionários públicos republicanos manifestando-se a favor de ideias desse tipo são irresponsabilidades ou fruto de parco conhecimento de História. Talvez também possam ter saudades do autoritarismo. Alexandre Barros, Ph.D. em Ciência Política (University of Chicago), é diretor-gerente da Early Warning: Gerenciamento de Risco e Oportunidade Política (Brasília) E-mail: alex@eaw.com.br


O emprego das Forças Armadas

O anteprojeto que altera a Lei Complementar 97 - que dispõe sobre as normas de organização, preparo e emprego das Forças Armadas -, antecipado pelo Estado na sexta-feira, não dá às forças militares nenhum poder de polícia. Apenas explicita o que podem fazer, na faixa de fronteira, para a manutenção da lei e da ordem. Na verdade, pelo menos uma das atribuições que estão sendo apresentadas como novidade - poder fazer prisões em flagrante - é prerrogativa e dever de qualquer cidadão honesto, paisano, policial ou militar, que presencie um crime. Outra atribuição, a de revistar embarcações suspeitas, está consagrada nas leis do mar desde sempre.

O governo agiu com prudência ao tratar das chamadas missões subsidiárias das Forças Armadas, principalmente as relativas à manutenção da lei e da ordem. Às tarefas já consagradas não se acrescentou nenhuma e, às existentes, não se deu maior amplitude. Tinha razão o diretor-geral da Polícia Federal, Luiz Fernando Correa, ao advertir que seria uma temeridade conferir poder de polícia aos militares. "Não podemos confundir segurança externa com segurança interna", disse. Essa não foi uma reação corporativa, mas uma manifestação de elementar bom senso. Farta literatura demonstra que, onde quer que os militares tenham exercido poder de polícia, as consequências foram desastrosas para a democracia e para as liberdades individuais.

O que se fez foi dar aos militares respaldo legal explícito para o cumprimento dessas missões, na rotina das patrulhas nas fronteiras. Há muito os militares reclamavam a definição legal de sua competência e responsabilidade. O anteprojeto atende, de maneira razoável, à reivindicação. Assim, as missões estão claramente definidas no texto e os militares que, em consequência de ações de manutenção da lei e da ordem, forem processados, responderão à Justiça Militar. Pela lei ainda vigente, os militares ficam numa espécie de limbo jurídico. Por exemplo, os soldados que atuaram no Rio, em 1994 e 1995 e foram processados na Justiça comum, ficaram sem a proteção de suas Forças e têm de pagar seus advogados. Com a mudança, ficará claro a quem caberá o controle legal dos participantes das missões complementares. Essas mudanças, sem dúvida, darão a tranquilidade necessária para que os militares exerçam as suas atividades de patrulha e fiscalização nas fronteiras. Mas não são as mais importantes do anteprojeto.

No texto, o que mais se destaca é o processo de subordinação dos militares ao que se convencionou chamar de poder civil. Os militares continuam subordinados ao presidente da República, mas agora com a intermediação do ministro da Defesa, no que se refere ao controle operacional da tropa, ao sistema de promoção de oficiais e à designação dos comandos de unidades. Trata-se de um avanço natural, no longo processo de amadurecimento e consolidação do Ministério da Defesa. Quando ele foi criado, em 1999, previa-se a sua evolução por etapas. O que não se esperava é que demorasse uma década até que o governo decidisse ser este o momento de ampliar a autoridade do ministro da Defesa, criando ao mesmo tempo o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, uma medida imprescindível para que as Forças Armadas, no futuro, possam atuar integradamente e não, como ocorre hoje, cada Força por si ou, no máximo, em exercícios combinados. Outra medida positiva do anteprojeto é a que determina que o orçamento das Forças será elaborado em conjunto com o Ministério da Defesa, que o consolidará, definindo prioridades.

Da mesma forma que o anteprojeto não atribuiu poder de polícia às Forças Armadas, ele não cuida dos mirabolantes planos de reequipamento descritos em matérias publicadas pelo Estado. São coisas distintas. O projeto deve ser apreciado logo pelo Congresso e trata da estrutura do Ministério da Defesa. Já o reequipamento está no terreno dos planos e, por mais necessário que seja, depende de disponibilidades orçamentárias que não existem a curto e a médio prazos. Afinal, não custa nada ao Tesouro o anúncio da futura compra de uma esquadra capitaneada por porta-aviões e navios-escola, ou a criação de oito brigadas. Somados os planos quinquenais e decenais anunciados pela imprensa, o Brasil teria as maiores e mais poderosas Forças Armadas do planeta.

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