Infecções, erros grosseiros, amputações desnecessárias – as armadilhas que se escondem sob a face tranquilizadora da medicina moderna; e um guia para defender seu bem mais precioso: a saúde
Quando atravessamos a recepção elegante de um hospital de boa
reputação, somos encorajados a pensar que ele funciona como um
território vigiado. Cada funcionário em seu lugar, trabalhando de acordo
com padrões, atento ao fato de que deslizes serão notados, anotados e
corrigidos. Quem conhece os bastidores das mais respeitadas instituições
tem outra visão. “A realidade é mais parecida com o Velho Oeste”, diz o
médico americano Martin Makary, um observador privilegiado das
entranhas dos mais badalados hospitais dos Estados Unidos. Sem meias
palavras, Makary expõe verdades incômodas no livro Unaccountable: what hospitals won’t tell you and how transparency can revolutionize health care (em português, Sem prestar contas: o que os hospitais não contam e como a transparência pode revolucionar a assistência à saúde). É hora de quebrar o silêncio.
A obra de Makary, comentarista das redes de TV CNN e FoxNews,
recém-lançada nos Estados Unidos e ainda sem editora brasileira, não
passou despercebida. “A cada colega que me considerou um traidor por
escrever esse livro, cinco me agradeceram”, disse Makary a ÉPOCA. “É um
sinal de que o tempo da transparência chegou.” Cirurgião especializado
em aparelho digestivo, Makary trabalhou em várias das mais respeitadas
instituições médicas dos Estados Unidos. Fez pesquisas sobre saúde
pública na Universidade Harvard, em Boston, e atualmente atende no
Hospital Johns Hopkins, em Baltimore. Ele não está sozinho. Há um
movimento crescente, observável também no Brasil, em defesa de uma
medicina mais transparente. Essa corrente acredita que qualquer cidadão
deveria ter acesso a informações objetivas sobre a qualidade dos
hospitais.
Qual é a parcela de pacientes que contrai infecção em determinada
instituição? Qual é o índice de complicações cirúrgicas? Qual é a
sobrevida dos doentes depois de um transplante ou operação cardíaca?
Quantos recebem medicações erradas durante a internação? No Brasil, os
melhores hospitais são avaliados periodicamente nesses quesitos e em
muitos outros – num total de 1.300 itens. Eles fazem parte de uma elite
de 21 instituições (leia a lista abaixo) num universo de 6.500
hospitais do país. Só elas dispõem do selo de qualidade emitido pela
Joint Comission International (JCI), uma espécie de norma de controle de
qualidade da área da saúde. Esse é o selo mais prestigiado do mundo.
Além dessas, 180 instituições têm certificados emitidos por outras
entidades.
COMO ESCOLHER UM HOSPITAL? |
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Saber se ele tem um selo de qualidade internacional é um bom parâmetro. No Brasil, apenas 21 instituições conquistaram o certificado mais valorizado no mundo. Ainda assim, não existe hospital 100% seguro |
SÃO PAULO Hospital Albert Einstein Hospital Sírio-Libanês Hospital Samaritano Hospital Alemão Oswaldo Cruz Hospital do Coração/HCor Hospital Paulistano Hospital Total Cor Hospital São José/Beneficência Portuguesa Hospital Nove de Julho Hospital São Camilo Pompeia Hospital Santa Paula RIO DE JANEIRO Hemorio/Secretaria Estadual de Saúde Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia/ Ministério da Saúde Hospital do Câncer I/ Instituto Nacional do Câncer Hospital do Câncer II/ Instituto Nacional do Câncer Hospital São Vicente de Paulo Hospital Copa D’Or PORTO ALEGRE Hospital Moinhos de Vento Hospital da Criança Santo Antônio/ Santa Casa de Misericórdia Hospital Mãe de Deus RECIFE Hospital Memorial São José Fonte: Consórcio Brasileiro de Acreditação/ Joint Commission International |
Nos Estados Unidos e no Brasil, as informações detalhadas sobre cada
hospital existem, mas são guardadas a sete chaves. Raras são as
instituições que divulgam um ou outro indicador de qualidade. Makary
defende a divulgação desses dados. Uma forma simples e objetiva de dar
poder aos consumidores do bem mais precioso do mundo: a saúde. Se
podemos escolher um hotel ou um restaurante a partir de critérios
técnicos, por que não temos o direito de fazer o mesmo por nossa vida?
Esse é um debate que faz cada vez mais sentido no Brasil. Nos últimos
dez anos, o número de brasileiros que dispõem de planos de saúde
privados cresceu 50%. São hoje 47 milhões. Nas grandes cidades, as obras
de expansão dos hospitais particulares avançam em ritmo acelerado. Mal
são inauguradas, as novas alas se mostram insuficientes para atender
tanta gente – principalmente nos prontos-socorros. “Há filas de quatro
horas e reclamações por todos os lados”, diz Francisco Balestrin,
presidente do conselho da Associação Nacional dos Hospitais Privados. “A
pressão dessa demanda exacerbada tira a qualidade do atendimento.” O
excesso de doentes é um complicador, mas não explica todas as falhas.
Um estudo feito por pesquisadores da Universidade Harvard em dez bons
hospitais americanos expôs um fato conhecido no meio médico: 25% dos
pacientes internados sofrem algum tipo de dano. Mesmo nos centros
americanos de alta tecnologia, pequenas falhas ou erros gravíssimos
ocorrem rotineiramente. Esponjas cirúrgicas são esquecidas no corpo dos
pacientes, membros errados são operados, crianças recebem excesso de
medicação por causa da terrível caligrafia dos médicos.
O excesso de confiança dos profissionais, a falta de comunicação entre
os integrantes da equipe e o descuido em relação às normas de segurança
(parece incrível, mas muitos médicos não lavam as mãos antes e depois de
atender um paciente no quarto ou na UTI) expõem os pacientes a riscos
desnecessários. No Brasil, o diagnóstico é semelhante. Os avaliadores de
hospitais flagram erros de identificação, falta de pessoal qualificado,
desleixo em relação à estrutura física (leia o quadro ao lado).
O cenário é hostil, principalmente porque escolhemos hospital da forma
mais subjetiva possível. Somos influenciados pelo marketing, pela
decoração e pela opção das celebridades. Esta, por sinal, pode ser a
pior maneira de eleger um médico. Makary relembra um caso exemplar.
Trocando o nome dos envolvidos, poderia ser uma história bem brasileira.
Em 1980, Mohammad Reza Pahlavi, o xá do Irã, era um dos aliados mais
importantes dos Estados Unidos. Quando um câncer no sistema linfático
(linfoma) o fez adoecer de repente, Washington fez questão de oferecer o
que havia de melhor na medicina americana. Michael DeBakey, o mais
famoso cirurgião do mundo, chegou rapidamente ao Oriente Médio.
Recomendou uma cirurgia imediata de remoção do baço. Nesse tipo de
operação, há o risco de perfurar o pâncreas acidentalmente. Para evitar
complicações, uma precaução básica é instalar um dreno cirúrgico. Ele
evita que o fluido pancreático fique acumulado no corpo do paciente e
provoque uma infecção. Confiante em sua habilidade, DeBakey não colocou o
dreno. Ao final da cirurgia, declarou que a operação fora um sucesso.
Recebeu medalhas e virou um herói no Oriente Médio. Pouco tempo depois, o
xá começou a ter febre e vômitos. A infecção, combinada ao agravamento
do linfoma, debilitou-o até a morte.
O erro do governo americano, do xá e de sua família foi não ter
percebido que DeBakey era um excelente cirurgião cardíaco – não de
abdome. Dos 479 artigos científicos que DeBakey assinara, mais de 95%
eram sobre cirurgia cardiovascular. Apenas um mencionava o baço, e,
ainda assim, ele não era o autor principal. A aura de superstar ofuscou a
razão de todos os envolvidos. DeBakey errou duplamente. O excesso de
autoconfiança o impediu de fazer o básico. Ou de pedir a ajuda de um
especialista. Se até os poderosos erram ao escolher cuidados médicos,
como o cidadão comum pode se defender?
>> A edição de ÉPOCA que chega às bancas neste fim de semana traz um guia para desarmar as principais armadilhas
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