terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O que o boato sobre o larvicida que "causa" microcefalia diz sobre nosso medo de epidemias

Vida

Boatos acompanham a história das grandes epidemias. Para a pesquisadora Dilene do Nascimento, da Fiocruz, na falta de conhecimento científico sólido sobre as doenças, a população cria suas próprias explicações

RAFAEL CISCATI- Época
16/02/2016 - 13h01 - Atualizado 16/02/2016 14h55
Garoto de 10 anos segura no colo irmão de dois meses que nasceu com microcefalia em Pernambuco (Foto: AP Photo/Felipe Dana, File)
O Rio Grande do Sul proibiu, no último sábado (13), o uso do larvicida pyriproxyfen  na água potável para consumo humano. O pyriproxyfen  era usado em reservatórios de água para evitar que eles se transformassem em criadouros do mosquito Aedes aegypti. A substância é dotada de um hormônio que prejudica o desenvolvimento do mosquito – impede que a larva se transforme em um adulto saudável, capaz de transmitir doenças sérias, como dengue, zika e chikungunya. Por causa disso, o larvicida foi apontado como vilão em potencial – de acordo com uma ONG de médicos argentinos, ele seria o responsável pelo aumento dos casos de microcefalia no Brasil.

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As conclusões da ONG não têm base científica. O relatório que culpa o larvicida foi publicado pelo Physicians in the Crop-Sprayed Towns (PCST), um grupo de médicos que se opõem ao uso de agrotóxicos e pesticidas por temer as consequências para a saúde humana e para o meio ambiente. O grande problema é que, no caso do pyriproxyfen, não há estudos que sustentem essa suspeita. Ela foi levantada com base em uma associação perigosa: para os argentinos, se o veneno causa problemas no desenvolvimento do mosquito, deve causar também problemas no desenvolvimento humano. Os estudos sérios feitos a respeito, até hoje, dizem o contrário. Segundo eles, o larvicida é uma substância segura, de capacidades tóxicas baixas, que não fornece riscos à saúde humana. A substância é recomendada pela Organização Mundial da Saúde. No relatório, o PCST cita a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Segundo os argentinos, os médicos brasileiros também apontavam a relação entre o larvicida e a microcefalia. Na segunda-feira (16), a Abrasco divulgou uma nota dizendo que fora mal interpretada pelos argentinos, e que não encontrava relação entre o veneno e a deficiência.

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As inconsistências no discurso da ONG não impediram que o boato do larvicida se espalhasse – e fosse capaz de influenciar ações do poder público. Ele é o mais recente de uma série de suspeitas sem fundamento que surgiram desde que foi levantada a associação entre zika e microcefalia. No final de 2015, circulou o boato de que os casos de microcefalia eram causados por vacinas contra a rubéola vencidas. A história não fazia sentido – mulheres grávidas não são vacinadas contra essa doença. Mesmo assim, muita gente acreditou. Na mesma época, outra história atribuiu a culpa da epidemia de zika a mosquitos geneticamente modificados. Os animais existem, mas foram criados para combater a dengue.

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Para Dilene do Nascimento, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e especialista na história das epidemias, esses boatos surgem porque, na falta de uma explicação definitiva, a população busca alternativas fora da ciência: “Até que se construa conhecimento científico sólido, o conhecimento leigo preenche a lacuna”, diz Dilene. E o método científico, por sua natureza, lida com incertezas e avanços lentos: “A ciência não pode fazer afirmações peremptórias se não tiver comprovação”, afirma a pesquisadora. No caso das ocorrências de microcefalia no Brasil, a associação entre o problema e o vírus zika é a mais provável. Mas a ciência admite que há dúvidas.

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Boatos como os do larvicida são perigosos. Eles podem confundir a população, levando as pessoas a desrespeitar recomendações básicas, como usar repelente para se proteger do mosquito. São comuns ao longo da história – boatos acompanharam a eclosão de epidemias de gripe espanhola, aids, poliomielite e outras tantas no decorrer do último século. Nesta entrevista, Dilene tenta explicar por que esse fenômeno ocorre.
ÉPOCA - É comum que surjam boatos quando ocorrem epidemias e outras emergências médicas?
Dilene do Nascimento -
 É muito comum. Até que se esclareça a causa da doença – quando se trata de uma epidemia nova – as pessoas apelam para qualquer explicação. Se elas não têm uma explicação concreta vinda de um cientista, outras hipóteses que pareçam plausíveis para a população acabam sendo acatadas. E isso aconteceu em outras situações ao longo da história.
ÉPOCA - As pessoas não confiam nos cientistas?
Dilene - 
Há momentos em que a ciência é parcialmente desacreditada. Foi o que aconteceu na época da aids. Naquele momento, na década de 1980, a biomedicina perdeu prestígio. Até ali, achava-se que estava tudo sob controle, tudo resolvido. Quando a aids surgiu, a gente percebeu que não. Que a biomedicina não dava conta de tudo. Ela perdeu crédito, e as explicações saíram do campo da ciência. Passaram a ser fornecidas pela comunidade leiga. Até que se construa conhecimento científico sólido sobre a doença, o conhecimento leigo preenche a lacuna. A população quer explicação. Por que está acontecendo isso? Qual a ligação entre zika e microcefalia? E começa a desconfiar do discurso das autoridades. Vem a notícia de que na Colômbia há zika, mas não há microcefalia. Esses médicos argentinos aparecem dizendo que o responsável pela microcefalia é um larvicida. Com tudo isso, a população passa a achar que as explicações fornecidas não são plausíveis, e vai atrás de outras. E esse processo ocorreu em todos os momentos de epidemias importantes no país.
ÉPOCA - Quais são os casos de boatos mais marcantes na história das epidemias no Brasil?
Dilene -
 Há o caso da gripe espanhola, de 1908. O problema não foi saber qual a causa da doença, mas como se proteger dela e como tratá-la. Dizia-se que a gripe era transmitida de pessoa a pessoa, mas não ficava evidente, para a população, como acontecia essa transmissão. Para se proteger, quem estava saudável isolava e discriminava quem estava doente. O impacto disso é grande para uma comunidade, para a sociedade. O mesmo aconteceu com a poliomielite, já na segunda metade do século XX. Até ali, a pólio era uma doença um tanto obscura. Até que se entendesse melhor seu  processo fisiopatológico, várias explicações foram dadas. Falou-se que o problema era causado por uma mosca ou por outros artrópodes. Houve coisa semelhante durante a epidemia de aids em 1980. A doença foi considerada um problema dos homossexuais masculinos. O efeito foi devastador. Quem não era homossexual e não era homem, se sentia imune à doença. Logo, a incidência da aids aumentou muito entre as mulheres. Inclusive entre as mulheres casadas. Uma mostra de que, muitas vezes, a informação enviesada pode ser pior que a falta de informação.
ÉPOCA - Esses boatos são perigosos? Podem atrapalhar a ação dos governos e médicos?
Dilene - 
Em parte,sim. O governo diz: “as gestantes devem usar repelentes e vestir manga comprida, para se proteger”. Nesse calor de verão do Rio de Janeiro, essa recomendação exige muito esforço para ser seguida. Se alguém diz que a microcefalia não é causada pelo zika e, sim, por vacinas vencidas ou por um larvicida, as pessoas se sentem livres para desrespeitar essas recomendações.

ÉPOCA - No caso do zika e da microcefalia, o governo tenta dar explicações, mas admite certo grau de incerteza. Por que é mais fácil acreditar em um texto publicado em um veículo obscuro do que naquilo que o ministro da Saúde fala?
Dilene -
 A explicação está no campo político. O governo não consegue ter a última palavra quando sofre com índices de aprovação baixos e quando é criticado, por razões diversas, a torto e a direito. Além disso, o governo não pode, nesse caso, apresentar certezas. Todos os cientistas estão pesquisando aceleradamente, tentando encontrar explicações e soluções. A gente sabe que o vírus é neurotrópico. Por isso, em teoria, pode ser o responsável pelos problemas de desenvolvimento dessas crianças. Mas isso ainda é uma possibilidade. É a mais provável, mas a ciência não pode fazer afirmações peremptórias se não tiver comprovação.

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