Os policiais militares constituem a categoria de funcionários que
sofre a mais draconiana legislação contra movimentos reivindicatórios: a
Constituição Federal proíbe-lhes a greve, o Código Penal Militar prevê
crimes militares e os regulamentos disciplinares permitem até um mês de
prisão disciplinar. No entanto, os policiais militares de Pernambuco
encerraram na semana passada uma greve de 12 dias, repetindo a crise de
1997, quando PMs de vários Estados se rebelaram por melhores salários.
Essas movimentações foram surpreendentes e inquietantes não só pela
desordem e abandono das tarefas de policiamento, como também pelo fato
de que as ações mais graves ocorreram em algumas polícias militares de
maior rigor disciplinar do País como Minas Gerais, Rio Grande do Sul e
Pernambuco.
A investidura militar dos policiais foi instituída pelo padre Feijó
no século 19, justamente para controlar seus excessos e torná-los aptos
ao controle coercitivo da hierarquia social, num momento em que havia
uma perigosa massa de pobres e escravos, conforme relata o historiador
Thomas Holloway. Parece que o mundo mudou desde então. George Kelling e
Mark Moore, pesquisadores de temas policiais da Universidade de Harvard,
assinalam que o autoritarismo disciplinar, à moda militar, só conseguiu
desmotivar as forças policiais e incrementar a militância sindical. O
rigor militar é desmoralizado pela profundidade da insatisfação
funcional.
A face visível dessas crises - protestos dos policiais por melhores
salários - pode ter sido precipitada por lideranças ocasionais ou por
estímulo continuado das entidades associativas de policiais. Mas as
verdadeiras causas dessas crises são mais profundas e antigas e
persistem como brasas sob as cinzas da aparente calmaria, sobrevinda ao
término do movimento. É comum os governantes investirem exclusivamente
na infra-estrutura da segurança - prédios, carros, rádio-comunicação,
armas - para tentar a redução e o controle da criminalidade, esquecendo
quem vai utilizar esses equipamentos, os policiais. Os governos parecem
considerar o policial como um funcionário qualquer, deixando de observar
que nenhuma função pública ou privada reúne tantos fatores estressantes
como o trabalho policial: exposição continuada às intempéries e à
poluição ambiental, horários prolongados, salário indigno, encontros
tensos com a população, contatos com as piores tragédias humanas,
permanente risco de vida e, no caso dos policiais militares, o
tratamento disciplinar das humilhantes prisões administrativas.
Os resultados podem ser vistos no hospital da PM, por sinal cada vez
mais sucatado: hipertensão, doenças digestivas, sobrecarga na
psiquiatria com alcoolismo, envolvimento com drogas e outras
descompensações funcionais, além de um número alarmante de suicídios. De
todos esses fatores, o fator gatilho é o tratamento disciplinar
desrespeitoso que agride severamente a auto-estima.
O ser humano só aceita se sentir subordinado a alguém sob condições
muito especiais; quando falta o respeito e o tratamento digno e sobra a
pressão injusta, as reações virão: agressão deslocada a cidadãos, à
família ou à própria pessoa, apatia, alcoolismo, suicídio ou
eventualmente agressão aberta aos superiores ou ao governo. Não é de
estranhar que nas negociações dos movimentos grevistas os chefes formais
sejam substituídos por lideranças da baixa hierarquia e existam mais
deputados entre soldados e sargentos do que entre os oficiais,
evidenciando uma perigosa cisão entre os estratos de comando e execução.
É cada vez mais evidente que a reivindicação salarial é apenas a
ponta do iceberg, o argumento mais compreensível para o grupo e para a
sociedade. Por baixo da fratura exposta da greve policial, arde
silenciosa a desmotivação e o desinteresse com as necessidades da
população. Nenhum Estado brasileiro tem programa de valorização dos
recursos humanos policiais, que cuide concretamente da auto-estima e de
outras necessidades críticas: salários, atendimento médico-hospitalar,
oportunidades de carreira, condições ambientais adequadas, programas de
moradia, transporte e alimentação, prevenção dos riscos profissionais.
Sem esse investimento o potencial de crise funcional na polícia
continuará ardendo e erupções ocorrerão, queiram ou não as autoridades,
permitam ou não as leis.
Artigo do Cel. José Vicente da Silva
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